Capa do livro de Alberto Pimentel (1904), "A triste canção do sul",
Ilustração: Júlio Leite, 1904.
1. Ainda a propósito do Bairro Alto, mesmo que já não seja do nosso tempo (estamos a falar de há mais de 100 anos) (*), achámos que pode interessar a alguns leitores, que gostam do fado e da sua história, a reprodução de alguns excertos do livro de Alberto Pimentel (1848 -1925) (curiosamente um homem do Norte, nascido no Porto), que escreveu, em 1904, "A Triste Canção do Sul". ("Triste", seguramente por contraposição às alegres canções folclóricas do Minho e de Entre Douro e Minho; acrescente-se que o Alberto Pimentel foi um escritor, jornalista e romancista, com alguma notoriedade no seu tempo, mas hoje praticamente esquecido, que escreveu quase tudo sobre quase tudo, incluindo uma primeira biografia de Camilo Castelo Branco, de quem ele se considerava, de resto, se considerava amigo, admirador e discípulo.)
Tenho uma cópia de "A Triste Canção do Sul", muito desconjuntada, comprada há mais de 50 anos num alfarrabista do Bairro Alto. O livro, que já é do domínio público (isto é, livre de direitos de autor, o Alberto Pimentel já morreu há mais de 70 anos) está felizmente digitalizado pela nossa Biblioteca Nacional (veja-se cópia em formato pdf aqui.).
Há um edição mais recente, em papel, da Dom Quixote, 1989. Da edição de 1904, e sem revisão da ortografia em vigor na época, tomamos a liberdade de reproduzir alguns excertos.
É interessante verificar como algum do calão do "faia do Bairro Alto" dos finais do século XIX chegou até aos nossos dias, e era utilizado por nós na tropa e na guerra; por exemplo: estampa (bofetada), briol (vinho), pinha (cabeça), cebola (relógio), raspar (fugir), batota (jogo), larica (fome), naifa (faca), butes (pés, bota), piela (bebedeira), afinfar (bater em), paínço, milho, graveto (dinheiro). etc. (**).
Cap III - Os assumptos do Fado (pp. 77, 89-93)
(...) O calão é a linguagem habitual do fadista. Parece un dialecto, sem o ser rigorosamente. Muito pittoresco, não se limita apenas a alterar phoneticamente as palavras como a gíria infantil; além de lhes alterar o som, altera-lhes também a forma, e muitas vezes lhes desloca a significação, levando-a para outros
objectos, n'um sentido tropologico, fundado na relação de semelhança.
Assim, a garrafa preta da taberna é viuva; os copos são filhos da viuva: uma viuva e dois filhos quer
dizer — uma garrafa e dois copos.
Mas se o copo é maior que o da decilitração habitual, chama-se sino grande.
O cigarro é soldado de calça branca; a navalha, sardinha; a faca, sarda; o apito, rouxinol; a quantia que o
rufião recebe da amante, queijada; o dinheiro, painço;
o café com leite, mulato; a agua com café, meio-caiado; Deus, juiz do Bairro Alto; as pernas, juntas; a barriga, folle das migas; as notas de banco, filhozes; enfiar uma guitarra pela cabeça d'outra pessoa é fazer uma gravata; a bofetada é estampa; a meia-porta dos bordeis do Bairro Alto, avental de madeira, etc. (...)
Nas outras linguas encontra-se um vocabulário correspondente ao calão dos nossos fadistas: os hespanhoes chamam lhe germania e chamavam lhe antigamente gerigonza; os francezes jargon e argot; os italianos gergo e lingua furbesca; os inglezes cant, etc. (...)
Calão vem de caló, nome que os ciganos dão a si
mesmos. (...).
No século XVII D. Francisco Manuel de Mello empregou alguns termos de giria na Feira dos anexins , que é, como se sabe, uma galante collecção de equívocos e jogos de palavra.
No século XVIII, o padre Bluteau organizou uma lista d'aquelles termos, que incluiu no seu Vocabulário, e que foi copiada em parte no Compendio de orthographia de Frei Luiz de Monte Garmelo. (...)
No século XIX (...), os Ciganos de Portugal, por Adolpho Coelho (***), abrangendo um importante estudo sobre o calão, e o diccionario de giria ultimamente publicado pelo sr. Alberto Bessa constituem copiosas fontes para o vocabulário do calão portuguez.
Adolpho Coelho traz o seguinte Fado composto em calão, reproduzido por Alberto Bessa:
Ao fadista chamam faia,
Ao agiota intrujão;
Ao corcovado golfinho,
Ao valente bogalhão.
Entre o povo portuguez
Ha calões tão revesados,
Que deixam muitos pintados
Por mais de cento e uma vez.
Lá vão alguns — trinta e trez
(Não sei se n'elles dou raia):
A' prata chamam-lhe laia,
A's nossas cabeças pinhas;
Aos porcos chamam sardinhas,
Ao fadista chamam faia.
A's nossas mãos chamam batas,
Ao génio chamam ralé;
A' esperança chamam filé,
A's bruxarias bagatas;
A's velhas chamam cascatas,
Ao poupado sovelão ;
Um gabinardo ao gabão;
Ao caldo chamam-lhe rola;
A um relógio cebola,
Ao agiota intrujão.
Ao fugir chamam raspar;
Chamam á casa mosqueiro;
Ao ébrio chamam-lhe archeiro,
Ao comprehender toscar.
Ao roubo chamam cortar,
A' guitarra pianinho,
Ao chapéu escovadinho;
Ao jogo chamam batota,
A uma sardinha aranhota,
Ao corcovado golfinho.
A' fome chamam peneira;
Também lhe chamam larica.
Chamam á cara botica,
A' aguardente piteira.
Chamam bico á bebedeira,
A uma mentira palão;
E também é de calão
Chamar-se ao vinho briol;
Ao nosso bucho paiol,
Ao valente bogalhão.
In: Alberto Pimentel - A triste canção do sul: subsídios para a história do fado. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, editot, 1904, pp. 89-93
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 11 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...
(**) Último poste da série > 11 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...