Mostrar mensagens com a etiqueta notas de leitura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta notas de leitura. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25411: Notas de leitura (1684): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (21) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Estamos prestes a concluir a apresentação do trabalho do nosso confrade José Matos e de Matthew Hurley, trata-se do penúltimo volume que eles dedicaram à Força Aérea Portuguesa na guerra da Guiné. Naquele ano de 1972, Caetano rejeitou peremptoriamente qualquer solução política entre Portugal e o PAIGC, mediada por Leopold Senghor, diz abertamente a Spínola que negociações com a guerrilha teriam impacto direto e imediato noutras parcelas do império. Continua o afã para encontrar meios aéreos mais modernos do que o Fiat, entretanto o PAIGC melhora o seu armamento e equipamento, visando claramente avançar para a guerra convencional. É todo o relato de tais peripécias que aqui se dá conta ao leitor, já não havia ilusões nos altos comandos de que o PAIGC tudo estava a fazer para quebrar a supremacia dada pela Força Aérea. Mas será matéria que ficará para o derradeiro volume, fica-se à espera que o José Matos nos dê essa notícia.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (20)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.


Capítulo 5: “Tudo estava dependente deles, de uma forma ou outra”

Como se viu no texto anterior, no rescaldo da Operação Mar Verde emergiu com mais intensidade toda a questão da defesa aérea que já preocupara o governador Schulz. Era indesmentível a incapacidade de Portugal em defender a Guiné de ataques aéreos, e Spínola estava bastante bem informado das lacunas existentes. O Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, General Venâncio Deslandes, que visitou a Guiné em junho de 1971, concordou com Spínola que a situação se estava a deteriorar a um ritmo preocupante, reconheceu o agravamento do clima militar, observando que as forças portuguesas “não são suficientes para garantir a permanência dos sucessos obtidos”, admitindo também que o PAIGC “pode tentar impor uma solução pela força, criando situações desfavoráveis, difíceis ou impossíveis de reverter”.

Spínola, no entanto, nunca baseou a sua estratégia apenas sob resultados militares, continua a insistir que “a expressão vitória militar” não tinha qualquer sentido naquele tipo de conflito, como disse claramente na reunião havida em maio desse ano no Conselho Superior de Defesa Nacional. “O problema só pode ser resolvido no domínio político, e quero acreditar que tal solução ainda é viável”. O Governador estava certamente a deixar mensagens que incluíam a abertura de um diálogo com as forças de guerrilha, um esforço que considerou necessário para evitar “uma agonia prolongada e inútil”. Spínola já tinha tentado negociações com elementos do PAIGC no chamado “chão Manjaco”, e o ministro do Ultramar escreveu mais tarde que Spínola estava eufórico com os resultados que antevia. A aventura terminou em tragédia, quando três majores, um alferes e os intérpretes foram brutalmente assassinados por elementos do PAIGC, em 20 de abril de 1970. “Foi um duro golpe que sofremos”, informou Spínola o Ministro da Defesa Nacional, Sá Viana Rebelo, no dia seguinte, “já que eles eram uma equipa de valor e determinação excecionais”.

Voltando um pouco atrás, Spínola julgara que o planeamento da Operação Mar Verde lhe oferecia uma oportunidade para remodelar radicalmente a guerra. O impacto internacional do ataque a Conacri, as repercussões que teve e a escalada da guerra na Guiné, tolheram qualquer iniciativa em direção ao acordo negociado até 1972, quando os esforços diplomáticos face ao Senegal foram retomados. Houve uma reunião em Cap Skirring, em 18 de maio desse ano, entre Spínola e o presidente senegalês Senghor, os dois discutiram um cessar-fogo e um período de 10 anos de transição para preparar a independência da Guiné. Ainda tendo na mente o chamado “massacre dos majores”, as forças portuguesas prepararam uma operação de peso com o objetivo de proteger o comandante-chefe durante a conferência. Sem o conhecimento do presidente Senghor, um conjunto de aviões Fiat estava de alerta em Bissalanca, pronto para bombardear “toda a área” ao primeiro sinal de qualquer ameaça de Spínola; a par desta eventual operação de bombardeamento, dez helicópteros Alouette III e dois Noratlas aguardavam para levar 130 paraquedistas para Cap Skirring, onde iriam “recolher os corpos”, incluindo o de Spínola, se fosse preciso.

A reunião terminou sem quaisquer incidentes, assim como um encontro de acompanhamento, vários dias depois. Encorajado pelos resultados, Spínola viajou para Lisboa no fim do mês para informar Marcello Caetano sobre o encontro diplomático. Fê-lo com grandes esperanças: Caetano era considerado menos rígido e dogmático em questões coloniais do que o seu antecessor. Em 1972, porém, a perspetiva imperial de Caetano tinha aparentemente endurecido. Durante a reunião havida em 28 de maio com Spínola, proibiu terminantemente novas iniciativas diplomáticos de resolver o conflito na Guiné, dizendo a um estupefacto Spínola: “Para a defesa geral dos territórios ultramarinos é preferível deixar a Guiné através de uma derrota militar com honra do que através de um acordo com terroristas que justificaria outras negociações em outros territórios.” Se as forças portuguesas fossem militarmente derrotadas depois de terem lutado com todo o seu potencial, argumentou Caetano, “tal derrota deixa-nos intactas as possibilidades jurídicas e políticas para continuar a defender o resto dos territórios ultramarinos”. Spínola concluiu, desapontadamente, que Caetano tinha desperdiçado a última oportunidade de Lisboa para resolver o problema da Guiné com honra e dignidade, a resposta de Caetano significava o sacrifício de vida das suas tropas e o prestígio das Forças Armadas.

Os comandos subordinados a Spínola tinham preocupações mais imediatas, observavam com preocupação o aumento das capacidades militares do PAIGC e a introdução de novas armas. Numa avaliação feita em 1972, a guerrilha conduzida por Amílcar Cabral tinha canhões antiaéreos de 37 mm, lançadores múltiplos de foguetes BM-21 de 122 mm, veículos blindados de transporte de pessoal BTR-40 e até tanques leves PT-76.

Além disso, a guerrilha começava a realizar operações mais ambiciosas, com formações maiores, o que correspondia à sua intenção há muito estabelecida de desencadear uma guerra de manobra convencional. O resultado óbvio, como concluía o comandante do GO-1201 (e, mais tarde, Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné) Coronel José Lemos Ferreira, era que o PAIGC acreditava agora que a vitória militar estava ao seu alcance, mas “o que eles precisavam era algo que anulasse a Força Aérea”. Com esta finalidade, as defesas antiaéreas da guerrilha reapareceram na Guiné em 1972. Em maio, por exemplo, canhões antiaéreos de 37 mm abriram fogo contra um par de Fiat que patrulhava a fronteira Sudeste e as chamadas zonas libertadas do Quitafine. Aqueles caças escaparam ilesos, mas outras oito aeronaves portuguesas ficaram danificadas pela ação da guerrilha durante o ano. Em fevereiro e agosto, fogo antiaéreo não especificado, presumivelmente originado da República da Guiné, atingiu um total de três Fiat que patrulhavam a fronteira Nordeste, provocando danos ligeiros. Dois DO-27 foram atingidos por tiros de armas leves durante março, assim como o T-6 em fevereiro, enquanto três Alouette III foram danificados por morteiros, por disparos de RPG e armas automáticas, em novembro e dezembro. A Zona Aérea reportou um total de 23 ações contra aeronaves ao longo de 1972, mas apenas dois resultaram em danos materiais ou ferimentos graves em militares portugueses. Significativamente esses incidentes envolveram armas e morteiros e infantaria em vez de sistemas antiaéreos especialmente construídos.

O Mirage passou a ser a opção para as operações da FAP em África (Dassault)
Em 1972, Spínola procura uma solução política para a questão da Guiné desde a mediação do presidente senegalês, mas Caetano rejeitou a iniciativa de paz (Coleção Revista do Povo)
O primeiro-ministro Marcello Caetano rejeitou qualquer negociação para a Guiné, temendo que ela seria um procedente irreversível para o resto do império colonial português (Arquivo Histórico do Ultramar)
Operações de fogo independentes da Zona Aérea, 1972 (Matthew M- Hurley, baseado em documentação portuguesa)

(continua)

_____________

Notas do editor:

Vd. post de 12 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25377: Notas de leitura (1682): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (20) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 15 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25389: Notas de leitura (1683):"Memórias SOMântícas", de Abulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25396: Humor de caserna (58): O anedotário da Spinolândia... O "Fugitivo", por Manel Mesquita ("Os Resistentes de Nhala, 1969/71", s/l, ed. autor, 2005, pp. 130/132)


Capa do livro do Manel Mesquita, 
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp. 
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)


1. Não havia só as anedotas do "Caco Baldé", ou do "Gasparinho"... Havia uma Spinolândia, do Cacheu ao Cacine... Naquela guerra, todos os bons pretextos para um gajo se rir ajudavam a passar o tempo e amenizar as agruras do arame farpado e das operações no mato (*)... 

Há "cromos" que ficam para a eternidade, "grafados" no papel. Outros vão desaparecer dos neurónios da nossa memória.  Já aqui citámos alguns dos "heróis" do livro do Manel Mesquita,   "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor,  s/l, 2005, 144 pp.), como por exemplo o Mário...

O Mário já estava farto de estar na Guiné e um dia encheu-se de coragem e interrompeu o general, em plena parada, em Aldeia Formosa, para expor a sua situação: "Vossa Excelência, meu general, dá-me licença ?" (**)...

O general deu-lhe "licença" e o Mário ganhou um "bilhete" para regressar a casa  no primeiro barco... A história foi contada pelo Manel Mesquita, o autor dos "Resistentes de Nhala",  soldado da CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71). 

O nosso crítico literário já lhe dedicou em tempos, ao livro e ao seu autor (que conheceu a caminho de Fátima), duas saborosas e generosoas "notas de leitura" (***)

(...) "Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente." (...) 

Nessa galeria de figuras humanas, do tempo da Spinolândia, está o "Fugitivo"... Merece figurar aqui num poste, na montra grande do nosso blogue. Não sei se o Spínola o conheceu, mas deveria, por certo, de gostar de o conhecer. Nós gostámos e pedimos licença ao Manel Mesquita para partilhar o seu retrato-robô com os nossos leitores. É um retrato feito a traço grosso, convenhamos. Mas o leitor vai-se rir a bandeiras despregadas, como nós rimos. 

É uma figura bem típica da "literatura  pícara" da nossa guerra. Como é nosso timbre, não fazemos juízos de valor sobre os nossos camaradas... A verdade é que "a tropa mandava desenrascar"... E o "Fugitivo" era um militar desenrascado... À letra, desenrascado é alguém que se sabe "livrar de um perigo, de apuros, de dificuldades."...

Reproduzimos aqui, com a devida vénia, essas duas páginas do livro. É também uma homenagem aos "resistentes de Nhala", os bravos da CCAÇ 2614.


O "Fugitivo"

por Manel Mesquita

O "Fugitivo" era natural e residente no concelho de Sintra. Era fisicamente muito baixo e entroncado, um artista a jogar futebol, preferia o lugar de médio atacante.

Quando fomos para a recruta, rodava na televisão uma série com o nome "O Fugitivo". Ele assentou praça com um braço ao peito por fratura. Como havia outro, o outro levou com a alcunha de "Maneta". E o nosso Manuel Pedro M... levou com a alcunha de "Fugitivo". 

Nunca se importou. Era uma pessoa alegre e com sentido de humor. 

(i) A tomar banho, um dia, deu nas vistas o seu curto pénis, foi motivo de chacota durante toda a comissão, principalmente na presença de mulheres africanas. Ele não desarmava, dizia que era proporcional ao corpo.

(ii) Quando veio de férias, gabou-se e passou a constar-se que andava com uma determinada moça jeitosa e com dote. Tinha barba muito forte, uma manhã foi ao barbeiro, todos os cumprimentaram o recém-chegado e deram-lhe a vez. 

Quando o barbeiro lhe passava a navalha de barba pela parte da frente do pescoço, perguntou-lhe:

− Então você é que é o tal que se gaba que anda a comer a minha filha?!

O Manel Pedro (como é lá conhecido) perdeu o sentido de humor, quase perdia a fala:

− Eu?!..., na, na, eu não!... É mentira. Isso é uma grande mentira..., eu até nem gosto de mulheres!!!...

O barbeiro voltou-se para a sua mesa de trabalho, passando a navalha pelo assentador.

O "Fugitivo" mostrou  por que lhe chamavam tal nome: levanta-se da cadeira, larga as toalhas e, junto da porta, grita para dentro:

− Eu... eu até sou paneleiro!

Fugiu da barbearia com a barba meia feita e meia por fazer e toda por pagar, nunca mais  por ali ele quis passar. 

Mostrou, mais uma vez,  que não foi por acaso  que o batizaram como "Fugitivo". Ficou então a saber a que a tal Maria do Carmo era a filha do barbeiro...

(iii) Quando convidado para um petisco, era sempre o primeiro a aparecer. Era um bom garfo! Para trabalhar e para as saídas (para o mato) era sempre o último. Quando preparávamos a saída, o alferes perguntava se estava o "Fugitivo"; se sim, estava tudo, podíamos sair.

Escapava-se,  sempre que podia,  às faxinas e outros serviços de quartel.

(iv) Um dia segredou a um de nós que a namorada se queixava que nos aerogramas e cartas não lhe mandava palavras doces... Então o "Fugitivo" encheu-lhe uma aerograma de palavras como: marmelada, geleia, mel, açúcar, compostas, etc., isto para o pequeno-almoço;  para o almoço: laranjas, tangerinas, etc.; para  o lanche, marmelada, mel, geleias, etc.; para o jantar:  uvas, figos, maçãs, pêras, etc. 

(v) Um colega estava com uma máquina fotográficas na mão, ele meteu-se  todo dentro de um bidão e... pediu-lhe:

− Tira-me uma fotografia de corpo inteiro para mandar à moça.

(vi) Num dos patrulhamentos, parámos para descansar junto à "Bolanha dos Passarinhos". Tirou a carga para descansar e,  quando levantámos, nunca mais se lembrou que deixara ali no chão o cano suplente da HK 21. 

Quando chegou oa aquartelamento deu pela falta. Preocupado, disse a todos a enrascada  em que estava envolvido, que tinha que ir lá  buscar o cano. 

Como raramente falava a sério, ninguém se acreditou. Era noite, preparou-se e começou a ir sozinho. Foi aí que o pessoal se acreditou, e apareceram voluntários a comunicar e a pedir autorização ao capitão para ir ao local.

O "chefe" comprendeu a aflição do soldado e mandou uma viatura. Soubemos que havia correio em Buba, aproveitámos  e fomos lá buscar o que para nós era importante receber. A viatura avariou, e não havia mecânico. Desenrascámo-nos, mas chegámos ao aquartelamento era quase meia-noite, sem jantar e sem comunicações com ninguém, mas já com o cano que era considerado material de guerra.

(vii) Dizem que um dia mandou dizer à mãe (não sei esta é verdade, ele nega; "lerpar" era um calão que queria dizer, para nós, morrer)... Ter-se-á referido a um colega duma aldeia vizinha, nestes termos:

− Minha mãe, o ... (nome do fulano) lerpou. Vai antes do tempo. Um dia destes ele vai chegar aí, num barco.

Na volta do correio, a mãe respondeu-lhe:

− Meu filho, vê se lerpas também, para vires mais cedo daí! 

(Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)

Fonte: in Manel Mesquita, "Os Resistentes de Nhala", ed. autor. s/l, 2005, pp. 130/132.
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)

 ______________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 26 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25308: O Spínola que eu conheci (36): A história do Mário, da CART 2478, contada pelo Manuel Mesquita, da CCAÇ 2614 ("Os Resistentes de Nhala: 1969/71", ed. autor, 2005)

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25389: Notas de leitura (1683):"Memórias SOMântícas", de Abulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Importa não esquecer que os intelectuais guineenses de há muito dão conta de um sonho perdido, de uma esperada reconciliação entre os povos guineenses que não houve, de uma pátria bem administrada que não houve, de uma solidariedade que rapidamente se transformou numa selvática competição de interesses, cada um por si, o Bem-comum não conta, todos os sonhos de Cabral caíram por terra. 

Recorde-se o filme Mortu Nega (em português, Morte Negada) de Flora Gomes, 1988, Kikia Matcho: O desalento do combatente, por Filinto de Barros, 1997, e mais recentemente o romance A Cidade Que Tudo Devorou, por Amadu Dafé, 2022, isto já sem esquecer o que escrevem ou escreveram Leopoldo Amado, Julião Soares Sousa e está espelhado na poesia de Tony Tcheka.

 É uma belíssima narrativa estas Memórias SOMânticas , não encontro explicação para esta palavra, talvez tenha a ver com semânticas e românticas, o pungente mas poderoso solilóquio da combatente vai à origem das palavras, o mesmo é dizer que vai à origem do sonho que presidia aquela luta e há o quê de romantismo na sua fé e no seu inabalável sonho. Mais explicações para a palavra é assunto que cabe ao autor revelar.

Um abraço do
Mário



Fui combatente do PAIGC, conheço a desilusão, mas vivo esta paixão da liberdade à exaustão

Mário Beja Santos

"Memórias SOMântícas", de Abulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016, é um espantoso solilóquio de uma mulher que participou na luta, que confiava numa pátria livre e numa cadeira de rodas assiste à degradação do seu país. É o cântico de uma heroína anónima, uma narrativa escrita na primeira pessoa e num absoluto silêncio, é uma mensagem para o futuro, um tema de reflexão para as gerações que não conheceram a luta armada:

“Esta é a história de uma vida. Uma vida que quis ser vivida. Com paixão e dignidade. Pretendo narrá-la, porque a existência só se torna memorável se for narrada. A narração, quando oportuna, restaura a crença, abrevia qualquer recordação dolorosa e enobrece a vida. Atribui-lhe cor e reverência”.

E confidencia-nos ao que vem:

“Nunca escondi as minhas ambições. Onde está o sentimento de liberdade se o que mais ambicionamos tem que ser escondido ou disfarçado? Pior ainda, privatizado. Quero que tudo o que ambicione de verdade seja também pretendido pelos meus próximos, acessível a todos, valorizado por todos”.

Orgulha-se de celebrar a vida, a despeito das ilusões, violentas e por vezes tão inesperadas. Disserta sobre a infância, a morte da mãe, os desamores familiares. Nunca aceitou a submissão, paradigma da mulher africana. Conheceu o amor, alguém que a vai despertar para a luta, ele desaparece e ela vai no seu encalço, vai para Conacri. Narra as vicissitudes de uma adaptação áspera, é hábil na negociação para se dar bem com as companheiras de quarto, o seu sonho cresce, pensa a toda a hora na independência, nas instituições do país, é mulher de esperança inabalável. Os tempos não são fáceis para ela em Conacri, assiste à chegada de gente jovem, irmanada pelos mesmos ideais, começa a trabalhar na cozinha, sente-se útil, procura afanosamente saber do seu amor que anda na luta, a todos que vêm a Conacri faz perguntas, por alguém se sabe que ele está vivo, rejubila. 

Nunca lhe passou pela cabeça ser enfermeira, detestava ver sangue, a vida troca as voltas, viu-se a colaborar num bloco operatório, foi louvada, decidiram que ela seria enfermeira.

Há ali perto do hospital alguém que vende cola e se chama Tunkan, tem uma filha a viver em Bafatá e garante-lhe quando a guerra acabar que quer ir a Bafatá conhecer os netos. Gosta do seu trabalho:

“Durante muitos anos ajudei a aliviar dores e a sarar feridas, tanto as visíveis como as que se escondem no fundo da alma, silenciosamente destruindo o corpo e inviabilizando sonhos. Tinha ajudado muita gente, agora tenho que ajudar-me a mim mesma, ser a minha própria enfermeira. Tenho que aperfeiçoar a arte de curar, a magia de dar sempre o que nem sempre se tem.”

É transferida para a Frente Sul, encontra o homem da sua vida em Kabukaré. E tece louvores àquela luta armada:

“Eu vi amor, paixão, entrega e determinação a germinarem, a manifestarem-se em todo o lado. Nos guerrilheiros e na população. Nas canções e no choro. Até no olhar das crianças mutiladas. Vi guerrilheiros com lágrimas nos olhos. Mas vi também o pesadelo do passado a evaporar-se sob o calor desse novo sol e descobri os contornos do novo mundo de paz e harmonia que vinha sendo anunciado nos cânticos. No escuro da pátria ainda subjugada, detetei uma tremeluzente luz projetada num horizonte não muito distante.“

Vive agora em Boké, aqui encaminha-se armamento para as frentes de combate e cuida-se os feridos, e tem o filho para criar. Ela aspira que quando a guerra acabar irão ter que investir na purificação dos corações, a vida ganhará uma outra dimensão, tem ainda interrogações para resolver:

“Porque é que havia africanos a combater ao lado dos brancos contra nós? Quando tomarmos a nossa independência e voltarmos para a nossa terra, os nossos comandantes vão continuar a confraternizar com os nossos combatentes como fazem agora? Quando acabar a guerra, o nosso Presidente vai precisa de guarda-costas armados?”

O amor da sua vida precisa de ir a Conacri, vai acompanhado do filho, irão morrer num acidente, ela está enlouquecida, o seu lenitivo é a sua amiga Ramatulai, é como uma irmã, mas há uma dor que subsiste:

“Eu sou dos inúmeros concidadãos que definitivamente vão voltar para casa magoados, com alguma amputação, temporária ou vitalícia. Eu levo todo um sonho amputado, sim, mas em vantagem em relação a muitos deles. Vou sem o meu companheiro de vida, sem o meu filho, mas com uma irmã, a minha irmã do coração.”

Chegou a hora da independência, apareceu Tunkan para ver a família, tinha o genro preso, acusado de colaborar com o exército colonial.

“Dei-lhe todas as garantias. Depois de uma guerra que vitimara tanta gente, a hora era de paz e perdão. Se estava em algum quartel ou cadeia eu iria encontrá-lo”.

Percorre o país de lés a lés, alguns dos camaradas com que tão intensamente convivera em Conacri fitam-na com desprezo, era como se ela perguntasse por uma pessoa que tinha traído, o que fazia dela uma traidora, alguém lhe dirá mesmo que para cada traidor haverá sempre uma bala no cano. 

“Como é que chegámos a este ponto? Em que se tinha tornado o meu querido país e a minha gente? Que fora feito da camaradagem que, proporcionado a permanente partilha das dificuldades dos êxitos, dos sonhos e das ambições, tornara a vida mais colorida para todos ao longo de tantos anos?”

Adoece e reage, dedica-se a uma escola frequentada por filhos órfãos do Partido. Tudo faz para que haja abastecimento seguro, vai mesmo ao Ministério da Agricultura onde pede e consegue sacos de semente de feijão, de milho, de mancarra, de arroz. Mas um dia acabou o internato, as crianças foram dispersas. 

“Sinto que estão por aí, entregues à sua sorte, sem a bênção de quem devia revelar-lhes as virtudes regeneradoras da fé e as lições da vida tiradas da História. Vacilei durante algum tempo e envergonho-me hoje disso.”

E é neste exato momento que Abdulai Sila tece os seus parágrafos sublimes, a renumeração daquela vida à procura do seu amor, a partilha do jubilo e das situações de desgraça, os terríveis desapontamentos de ter visto fechar um internato com órfãos de guerra, aquela mulher sentada numa cadeira de rodas lembra os órfãos da guerra, os mutilados, a solidariedade acabou, os jovens vivem sem ideais, ela não se entende com tanto despautério, é a fé que a alimenta, e então a velha combatente faz ressoar as trombetas para o futuro:

“Marginalizados? Nós é que domesticámos o invasor e abolimos o medo perante o desconhecido. Na calada da noite prenhe de incertezas reinventámos a vida e, bem alto no céu, fizemos soar a sinfonia da dignidade.
Deserdados? Construímos um mundo plural, onde todas as cores do arco-íris se fundem sem nunca se confundirem. Recuperámos a palavra e, abençoando-a, fizemos com que a magia da narração sustentasse os novos limites da razão.

Não erguemos troféus, não exigimos medalhas, nem guardámos ressentimentos. Impusemos um novo paradigma da inteligência: sem ser mártir nem ambicionar ser heróis, viver uma paixão até à exaustão e morrer sonhando.”


Na linha de uma literatura vincada pela dor do desapontamento de uma pátria derruída, Abdulai Sila dá-nos uma narrativa pungente onde o sonho, mesmo tão profundamente abalado, continua a ser a semente da vida, a razão por que se lutou para ser livre, é esse o derradeiro testemunho que se deixa às novas gerações. Um belíssimo texto de irrecusável leitura.

Houve tempos em que a Guiné contava entusiasticamente com quem a libertara
_____________

Nota do editor

Último post da série de 12 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25377: Notas de leitura (1682): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (20) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25377: Notas de leitura (1682): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (20) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Estamos a percorrer o ano de 1971, constou (felizmente, sem fundamento) a que se preparava uma base aérea na Guiné-Conacri para receber aviões soviéticos mais potentes para ações de bombardeamento; Spínola insiste permanentemente de que precisa de aeronaves mais adequadas do que os Fiat, todas as negociações para a compra dessas aeronaves não têm sucesso; ainda se encontrou um paliativo enviando a corveta Jacinto Cândido, mas manteve-se o problema gravíssimo dos radares antiquados. Este é o rescaldo da Operação Mar Verde, semearam-se ventos, estão-se agora a colher as tempestades, a ameaça de ataques aéreos deixou de ser uma hipótese meramente académica; recorde-se que em nenhuma circunstância Amílcar Cabral apoiou estes tipos de bombardeamentos, não obstante terem ido para a URSS uma série de formandos para pilotos dos aviões MiG-17.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (20)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.


Capítulo 5: “Tudo estava dependente deles, de uma forma ou outra”

A Operação Mar Verde não só produziu um maior isolamento diplomático ao Governo de Marcello Caetano como fez surgir uma nova ameaça ditada pela solidariedade de múltiplos estados com a causa do PAIGC, e a preocupação com uma frente de Força Aérea não era uma leviandade. A perspetiva do envolvimento nigeriano era a maior preocupação de Spínola. O ditador da Nigéria, major-general Yakubu Gowon expressou “o mais profundo choque e indignação com a invasão da Guiné-Conacri por forças estrangeiras prometendo toda e qualquer assistência que Sékou Touré venha a solicitar, militar ou não”. Era uma ameaça credível: Gowon comandava um exército já testado em combates com cerca de 200 mil homens, de longe a maior força na África Subsariana. Portugal irritara o regime de Lagos quando forneceu apoio militar significativo ao Biafra durante a guerra civil (6 de julho 1967 – 15 de janeiro 1970).

Com esperança em garantir amizade com, pelo menos, um Estado africano pós-colonial, e ansioso por enfraquecer o regime nigeriano firmemente anticolonialista, o Governo de Lisboa tinha voluntariamente fornecido apoio logístico vital, formação militar e até aviões de combate aos separatistas do Biafra. Essas aeronaves incluíam quatro T-6 adquiridos da sucata francesa e restaurados e capazes de voar. Como não havia autorização para sobrevoar na maioria dos países africanos, essas aeronaves foram desmontadas e enviadas por mar para Bissau, aqui foram remontados e transportados para campos de aviação controlados pelos rebeldes por pilotos portugueses (um deles, Gil Pinto de Sousa, foi capturado pelas forças nigerianas em 2 de novembro de 1969 e ficou preso até setembro de 1974). Bissalanca também facilitou a transferência de caças Gloster Meteor e de formadores para aviões de combate Fouga Magister, aqui ficou abandonado um Meteor na base e foi destruído um carregamento que transportava componentes para o Magister, aparentemente devido a uma sabotagem por um membro da tripulação. Além disso, Lisboa estabelecera um centro de logística aérea na ilha de S. Tomé, controlado pelos portugueses, fornecia armas, munições, mercenários e suprimentos de socorro para o Biafra. Sem estes apoios, a rebelião tinha entrado em colapso mais cedo, mas o facto é que acirrou a ira dos governantes da Nigéria. A Operação Mar Verde apresentava-se como uma excelente oportunidade para a vingança, mais a mais com a cobertura política adicional do Conselho de Segurança da ONU que emitira uma resolução apelando ao apoio à Guiné-Conacri.

É neste quadro em que se admitia uma intervenção hostil, incluindo meios aéreos que Spínola pede para Lisboa um imediato reforço de bombardeiros capazes de voo noturno, aptos para dissuadir ou retaliar qualquer ataque contra as posições portuguesas na Guiné. Especificamente, Spínola solicitava aeronaves com alcance suficiente para chegar aos principais aeródromos da República da Guiné (Conacri, Labé e Faranah) a partir da base da Força Aérea na ilha do Sal. Faranah era um alvo de interesse muito especial: em finais de 1971, três meses após a Operação Mar Verde, as autoridades portuguesas receberam notícia da construção de uma pista capaz de receber os bombardeiros Ilyushin II-28, três dos quais estavam a operar na Nigéria. A partir de Faranah, estes aviões de construção soviética (na terminologia da NATO “Beagle”) poderiam facilmente carregar bombas de 3000 kg para atingir qualquer alvo na Guiné Portuguesa. Relatórios posteriores acabaram por revelar que esta implantação era infundada.

Em 13 de fevereiro de 1971, dois aviões identificados como MiG-17, atravessaram a fronteira da República da Guiné-Conacri que sobrevoaram Bissau e seus arredores “de uma forma provocatória”, presumivelmente vinham com a missão de fazer o fotorreconhecimento da base de Bissalanca e do porto de Pidjiquiti. Conacri negou qualquer responsabilidade e a partir daí especulou-se sobre a nacionalidade dos aviões e dos pilotos. Os MiG-17 foram considerados da República da Guiné-Conacri ou da Nigéria e pilotados por pessoal destas nações da Argélia ou da Tunísia. Spínola concluiu que esta missão fora executada por pilotos altamente especializados, provavelmente soviéticos. Ficara a confusão sobre a origem dos aviões, a ambiguidade quanto à sua missão e até mesmo se o voo havia ocorrido, mas ficava demonstrado o espectro de deficiências paralisantes para controlar o espaço aéreo da Guiné, faltava a deteção de radares que impediam qualquer possibilidade de reagir mesmo que tivéssemos aviões adequados, protestou Spínola ao seu ministro de Defesa, aproveitando a correspondência para insistir em pedidos anteriores de reforço. Por usa insistência, a Corveta Jacinto Cândido foi designada para defender o porto e a cidade de Bissau com os seus dois canhões antiaéreos de 40 mm, canhões duplos de 76 mm e o radar de vigilância MLA-1B. Era uma medida provisória, o comandante-chefe protestou dizendo que a Guiné estava à merce de um ataque aéreo inimigo.

Neste tempo, havia apenas uma bateria antiaérea na Guiné, com um radar da década de 1940, um canhão de 40 mm e um canhão de 12,7 mm, metralhadores de 12,7 para proteger Bissalanca. Em entre finais de fevereiro e junho de 1971, chegaram três baterias adicionais para proteger Bissau com artilharia antiaérea de 9,4 cm e em três postos críticos (Nova Lamego, Aldeia Formosa e Nhacra), com canhões de 40 mm e 12,7 mm. Estavam limitados pela obsolescência dos radares Mark VI, de curto alcance e com dificuldade em agir em tempo útil, como informou um comandante da bateria. “Era de facto um sistema deficiente”.

Impunha-se um caça de superioridade aérea adequado. De acordo com uma avaliação da Zona Aérea, m 1971, o Fiat “não possui os atributos necessários para esta missão, o único caça da defesa aérea da FAP, o F-86, só poderia ser usado em desafio frontal às restrições norte-americanas”. Em sequência, o secretário de Estado da Aeronáutica, José Pereira do Nascimento, propôs a compra de três dezenas de aeronaves. Dos tipos de caças ocidentais então em produção, foram postos de parte os norte-americanos e os britânicos, devido à continuação das restrições, tal como o Draken sueco, dado que este país não escondia simpatias com o PAIGC. Ficavam na lista os caças Mirage. Pereira Nascimento propôs o Mirage III, comprovado em combate. As autoridades francesas bloquearam o pedido. O Governo de Paris não estava particularmente disposto a prejudicar as relações com o Senegal, que acolhia em permanência uma guarnição e base aérea francesas. Em maio de 1972, Portugal não tinha feito quaisquer progressos nas suas negociações com a França quanto a um acordo para a compra dos Mirage, as conversações foram reabertas em 1973 e 1974, no entanto, os caças Mirage nunca serviram na Força Aérea.

Prisioneiros portugueses em Conacri, libertados na Operação Mar Verde (Arquivo da Defesa Nacional)
Uma imagem da Operação Mar Verde (Coleção Luís Costa Correia)
O ditador nigeriano Major General Yakubu Gowon que prometeu ajuda militar à Guiné-Conacri depois da Operação Mar Verde (Agência Keystone Press)
O caça Gloster “Meteor” abandonado em Bissalanca pelos rebeldes do Biafra (Coleção José Nico)
Pedidos de caças para a Força Aérea versus os tipos de aeronaves existentes, em 1971, nenhum dos pedidos foi satisfeito.

(continua)
____________

Notas do editor:

Vd. poste de 5 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25342: Notas de leitura (1680): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (19) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 8 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25357: Notas de leitura (1681): "Margens - Vivências de Guerra", por Paulo Cordeiro Salgado; Lema d’origem Editora, Março de 2024 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25357: Notas de leitura (1681): "Margens - Vivências de Guerra", por Paulo Cordeiro Salgado; Lema d’origem Editora, Março de 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Porque ficou este amor excessivo pela Guiné, por aqui andamos a testemunhar o que a memória ainda retém, no caso vertente Paulo Salgado, nosso confrade, volta em ondas sucessivas ao Olossato, aproveita acontecimentos vividos nos anos da cooperação e estas vivências da guerra, que agora nos oferece em livro, andam talentosamente entre o antes e o depois. Compete-me fazer uma declaração de interesse, dizendo que conheci o Paulo Salgado nos meses de cooperação de 1991, que viajámos ao Cumeré e ao Olossato, que numa das suas páginas me trata por Mariano e põe-me em Galomaro (diga-se de passagem que no meu tempo era uma quase colónia de férias, mas ele retratou-me entre flagelações e minas anticarro...). Devo-lhe um memorável encontro no Cumeré com o coronel Mamadu Jaquité que me deixava bilhetinhos na picada, sempre tratando-me carinhosamente por "alferes de merda"; e, não menos importante, guardo comovido a recordação da viagem ao Olossato, espero que o Paulo Salgado se recorde que quando ali chegámos se disse que nada de tão edénico tinha visto, sentia-me em Sintra. Enfim, as vivências que partilhei com o Paulo Salgado.

Um abraço do
Mário



Nunca o preço do amor pela Guiné é excessivo, só a morte o pode aniquilar

Mário Beja Santos

Paulo Salgado, depois da sua comissão no Olossato e em Nhacra, voltou à Guiné muito mais tarde como cooperante na área da saúde, durante sete anos, e sobre esta temática e outras incursões já deixara algumas achegas na escrita. Acaba de publicar uma nova incursão, de cariz memorial, pontuada por solilóquios, circunlóquios, viagens ficcionadas mas com personagens de carne e osso, deixa fluir a consciência de como pensava e agia no turbilhão da guerra, e com subtileza articula todos os seus regressos ao anseio da paz e do desenvolvimento, aquela terra, aquela vivência ganham forma de um processo irrefragável, é corpo dentro do seu corpo, e não resisto a comentar o que me ocorreu quando finalizei a leitura das "Margens Vivências de Guerra", Lema d’origem Editora, março de 2024, aquele parágrafo de Álvaro Guerra na sua obra O Capitão Nemo e Eu, 1973, nada de mais belo conheço em termos literários, e tudo por causa daquela guerra que nos irmanou: “Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um Sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar.”

Paulo Salgado é Alberto, tudo começa no aeroporto de Bissalanca, vem esperar Mateus, irão viajar até ao Olossato, inevitavelmente passarão por Ponte do Maqué, “lá está o que resta do fortim, quadrado fortificado, por onde passaram pelotões de companhias para guarda e salvaguarda da ponte, coberto de capim e arbustos, tudo o tempo levou, mas não levou as memórias que me vêm ao presente”; no Olossato Mateus procura Sali, a sua antiga lavadeira, ela anuncia-lhe que lhe deixou um filho, tem nome de Infali, trabalha nos correios de Bissau, põe-lhe diante dos olhos uma criança de cinco anos, é o neto de Mateus e dá pelo menos nome, Mateus pensa logo em levar esta criança consigo e educá-la; mas há uma outra viagem, Alberto, a mulher e a filha levam um outro antigo alferes, de nome Mariano até ao Cumeré, conta-lhe que em Nhacra, no dia 9 de junho de 1971, houve bastante sobressalto com flagelações do PAIGC, no Cumeré Mariano procura o comandante Demba, o antigo guerrilheiro do PAIGC fora seriamente flagelado no seu aquartelamento por ele e por o seu grupo, depois de uns segundos de embaraço tudo acabou em abraços, e gritou-se viva à Guiné!, e viva à Portugal!

Temos agora uma rotação de lugar e tempo, o antigo médico combatente conversa com uma sua colega, um rasto de memória leva-os até ao Sul, a jovem médica tem muito por contar, e nem lhe passa pela cabeça como fez bem ao veterano da guerra ouvi-la. Voltamos á orla do Morés, há um soldado que chora numa emboscada e será reconfortado pelo seu comandante; há um radiotelegrafista que não queria naquele dia ir em operação, o alferes lá o persuadiu, houve emboscada, a vítima foi o radiotelegrafista.

Temos agora Mateus e Alberto junto do enorme poilão do Alto do Maqué: “As nervuras salientes do poilão são enormes, cabendo ambos numa das fendas, parecendo que, abraçando-a, a magnífica árvore parece recordar-se deles, uma espécie de reencontro entre a majestade e imponência da árvore e a revisitação por estes homens que a ela ocorrem respeitosamente. Sentado, de pé, ao lado, de vários ângulos, deixam-se fotografar por Carolina, embevecida perante aquele cenário, aquele consolo quase pueril dos ex-militares, agora cinquentões.”

E há a memória do rio, quase sempre um fio de água que vaza as suas águas pelos braços do rio Cacheu; naquele local, estratégico, entre Bissorã e Farim, com o Morés à espreita, há recomendações para fazer ação psicológica, organizar manifestações de apoio à política do Governo, Alberto, que comanda a companhia, conversou com onze chefes de tabanca, e houve recados incómodos, do género: “Nosso alferes, a guerra não tem jeito nenhum; o senhor fala com o homem grande de Bissau para falar com o chefe do PAIGC para acabar com a guerra.”

E há as cartas de amor, Fernando Pessoa falava nelas como ridículas, Alberto dirige-se à sua amada, um tanto circunspecto, mas sempre com muitas saudades; traz-se gente da população afeta ao PAIGC numa operação, Alberto conversa com uma enfermeira da guerrilha, ela diz-lhe sem volteios que só quer lutar pela liberdade, o capitão decide que ela e as outras mulheres voltem para onde estavam, como aconteceu; não falta a mágoa de receber mensagens criticando a falta de cumprimento exato do que se devia ter feito numa operação e Alberto/Paulo Salgado dão nos conta, como se todos estivéssemos numa sala de espelhos, em Assembleia Geral, da ansiedade na espera do correio, a morte de um ente querido que nos é comunicada por uma mensagem, os meses passam, há brancos e pretos, mortos e feridos, lá na companhia chegou a funcionar um jornal, de novo “O Tabanca”, morre a mãe de Alberto e ele dedica-lhe um lindo poema, estamos em novembro de 1970, no fim desse ano há um ataque com mísseis terra-terra ao Olossato, o capitão enviar para Bissau o relatório: “Aquartelamento e povoação atacados com mísseis terra-terra; não houve vítimas nem prejuízos; apenas há que refazer o heliporto.” Num relatório não cabe dizer que houve gente escoriada e que se comeu um jantar frio; caso excecional, desapareceu um cabo-condutor do aquartelamento, mandou-me mensagem informando que o militar se teria perdido na mata do Morés.

O cooperante Alberto está agora numa receção na embaixada do Brasil em Bissau, disserta-se e brinda-se à lusofonia. Novo salto até ao passado, Alberto viaja pelas tabancas do Olossato e, mais adiante, fala-se do pontão que liga as duas margens do rio Maqué, que faz a ligação entre Bissorã e Farim, e alguém conta que o PAIG a rebentou com petardos, houve que reconstruir a ponte; muito anos mais tarde, quem contou a esta história, de nome Suleiman, ex-chefe de milícia, foi visitado pelo cooperante Alberto no hospital Simão Mendes, e o que fica escrito a todos nós pertence:
“Que vida de dor, primeiro, português de segunda, depois guineense de segunda, castigado por ter combatido ao lado da trapo portuguesa; agora amortalhado, vencido pelo sacrifício e pela doença, tenho de chorar, para dentro, não se consigo reter as lágrimas, um pedaço da minha vida escoou-se naquela figura íntegra e amiga, que tantas vezes guiou os nossos passos, nossos e de outras companhias, trilhos, carreiros, picadas… e me salvou a vida, evitando o pisar de uma mina… que Alá te abençoe, Suleiman.”

Ainda há muito que esperar desta literatura memorial, na casa dos setentas e dos oitentas são estas acendalhas que tornam esplendente o que Álvaro Guerra nos advertiu em 1973, chafurdou-se na lama das lalas, viveu-se a espiral da solidão, conheceu-se o medo, viram-se crianças esquálidas e de ventre inchado, seres humanos minados pela doença, tudo parecia acabado quando a guerra para nós acabou, mas não, como diz Álvaro Guerra, nunca o preço do amor é excessivo, porque muitos receberam a graça de amar aquela terra como este amor que agora se confessa, não se quer só reter para uso da memória individual.
Olossato: torre abrigo com vista para a pista de aviação
Olossato: abrigo das peças de artilharia – obus 8,8
Olossato: efeitos de uma mina na estrutura da ponte

Estas três imagens foram extraídas do blogue Rumo a Fulacunda, com a devida vénia
Regresso ao Olossato, neste caso Ponte do Maqué, 2006. Paulo Salgado, ex-alferes da CCAV 2721, na companhia do ex-cabo Moura Marques. Imagem retirado do nosso blogue
_____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25342: Notas de leitura (1680): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (19) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25342: Notas de leitura (1680): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (19) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Passa-se em revista os acontecimentos que marcam a transição de 1970 para o ano seguinte, envolvem equipamento que foi sabotado em Tancos numa operação da ARA, os permanentes conflitos internacionais devido a fogo retaliatório em território fronteiriço da Guiné-Conacri e Senegal, segue-se a Operação Mar Verde e a partir de 1971, Spínola insiste que precisa de meios face às potenciais agressões que poderão vir da Guiné-Conacri, em resposta à incursão portuguesa. As insistências de Spínola para se comprarem aviões mais eficazes esbarrava sempre com negativas dos EUA e países da NATO, curiosamente é em Abril de 1974 que se estava a apalavrar a compra de Mirage, e por razões que veremos mais adiante, Kissinger parecia abrir mão, através de um negociante israelita, de mísseis terra-ar Red Eye, entretanto a guerra acabou.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (19)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.




Capítulo 5: “Tudo estava dependente deles, de uma forma ou outra”

Acompanhamos agora a evolução dos acontecimentos desde os finais de 1970. Houvera compra de equipamento militar, de acordo com as necessidades prementes da Força Aérea, entretanto uma ação subversiva em Tancos tornou inoperacional um conjunto importante de aeronaves. O debate internacional sobre a presença portuguesa em África era cada vez mais hostil ao Estado Novo, e as flagelações em territórios limítrofes da Guiné era sempre pretexto para reiteradas acusações na ONU contra as colónias portuguesas. Estamos num período em que aumentou o fornecimento de armas e material ao PAIGC, ofertas sobretudo da Europa de Leste e da URSS, as bases do PAIGC tanto na Guiné-Conacri como no Senegal foram ganhando importância.

O Comandante Alpoim Calvão observou: “Estávamos sempre perseguindo o inimigo, mas como as fronteiras da Guiné não estavam fechadas, era como esvaziar uma banheira sem fechar a torneira.” Frustrado com o uso incontestável do PAIGC de bases estrangeiras, Spínola orientou as suas unidades militares para ações retaliatórias (desde fogo de artilharia a operações especiais) nas zonas transfronteiras. O Ministro da Defesa Nacional, Sá Viana Rebelo, assumia uma postura diferente, ordenou a Spínola que respeitasse as fronteiras internacionais e derrotasse o inimigo dentro das nossas fronteiras, o que era materialmente impossível, a guerra, tanto na superfície como aérea implicava ou perseguições ou bombardeamentos nas regiões limítrofes. Como recordou o antigo Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, General Lemos Ferreira, nunca se deu autorização para ataques em território estrangeiro, mas eles iam acontecendo. Em 25 de novembro e em 7/8 de dezembro de 1969, as forças portuguesas terão bombardeado um depósito do PAIGC em Samine, no Senegal, matando seis civis e ferindo nove. O presidente senegalês, Léopold Senghor, ordenou um reforço de tropas na fronteira sul do Senegal, invocando acordos de defesa com a França, que garantia a utilização de seis Noratlas na base de Dacar. Em 12 de dezembro, estes aviões franceses transportaram 1200 soldados senegaleses para o campo de aviação de Ziguinchor, a cerca de 13 km da fronteira com a Guiné Portuguesa.

Esta demonstração de força (e uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas condenando as ações portuguesas) não dissuadiram futuras incursões; o Senegal queixou-se, entre janeiro e julho de 1970 de mais 16 ataques de forças especiais e fogo de artilharia, bem como oito violações do espaço aéreo. Amílcar Cabral admitiu que estas atividades retaliatórias tinham levado o Senegal a fechar os hospitais do PAIGC na região, a bloquear a passagem de armas e reforços e até mesmo a submeter os alimentos e medicamentos destinados ao PAIGC a controlos rigorosos.

A República da Guiné-Conacri também protestou contra a “agressão premeditada”, acusando as forças portuguesas na Guiné cinco ataques com obuses e três ataques aéreos no seu território em 1969; mas o ataque português de longe mais dramático e controverso ocorreu em novembro de 1970. Numa tentativa ousada de decapitar a liderança do PAIGC e fomentar um golpe de Estado na República da Guiné, as forças portuguesas organizaram uma invasão anfíbia a Conacri em 22 de novembro, a Operação Mar Verde, concebida e liderada pelo comandante Alpoim Calvão. Ele propôs um ataque noturno de forças especiais africanas da Guiné lideradas por oficiais portugueses e também membros do grupo dissidente a Sékou Touré, Front de Libération Nationale de Guiné (FLNG). Uma vez em terra, os atacantes tinham por missão assassinar o Presidente da República da Guiné, iniciar um golpe de Estado liderado pelo FLNG, destruir as instalações do PAIGC localizadas em Conacri, incluindo a sua sede, detenção do líder do PAIGC, Amílcar Cabral, resgatar os prisioneiros de guerra portugueses detidos na prisão La Montaigne; e, para garantir uma retirada segura destruir os MiG-17 da Força Aérea da Guiné e potencialmente embarcações hostis.

Devido, sobretudo, à falta de informações seguras e atualizadas e até à falta de apoio local aos sublevados, além da destruição de embarcações do PAIGC no porto de Conacri, o único objetivo alcançado foi a recuperação bem-sucedida de todos os 26 prisioneiros portugueses.

A participação da Zona Aérea na operação foi mínima, embora nos dias que precederam a operação os Fiat tenham realizado missões de fotorreconheicmento a 19 bases do PAIGC na República da Guiné, medida preparatória para os ataques aéreos que teriam lugar depois da queda do regime de Sékou Touré. Como isso não aconteceu, a atividade da Força Aérea durante a operação limitou-se a um voo de um P2V-5 Neptune vindo de Cabo Verde, que patrulhava à busca de navios inimigos enquanto as forças portuguesas navegavam para Conacri.

No entanto, a Mar Verde veio a ter um impacto duradouro sobre as operações da Força Aérea na Guiné. O efeito mais imediato foi o impulso moral gerado pela repatriação do único aviador português em cativeiro, o então furriel António Lobato. Este piloto de um T-6 fora aprisionado em 22 de maio de 1963, após uma colisão aérea, passou sete anos e meio em prisões da República da Guiné. Sendo o prisioneiro de guerra mais antigo dos 26 prisioneiros portugueses na prisão de Conacri, e o único piloto entre eles, a libertação de Lobato aumentou o ânimo do pessoal da Força Aérea, embora as circunstâncias da sua libertação tivessem permanecido num total segredo.

A ameaça dos aviões MiG-17 não estava neutralizada. Apenas dois dias antes da Operação Mar Verde, os aviões tinham sido transferidos para Labé, a 150 km de Conacri, por razões que continuam por explicar. Percebendo que “um dos fatores para o sucesso era o domínio aéreo, e estava-se severamente comprometido”, Calvão abortou a operação e ordenou às equipas de assalto para regressarem ao porto e daqui partir para a base na ilha de Soga. As autoridades da República da Guiné tentaram demasiado tarde utilizar as aeronaves contra os invasores, só pelas 9 horas da manhã de 23 de novembro um único MiG-17 apareceu sobre o porto de Conacri. Numa clara e impressionante demonstração de incompetência, o piloto identificou erradamente o cargueiro cubano Conrado Benitez e metralhou-o, em vez dos seis navios portugueses que já estavam em retirada. Pelas 9:30h, o caça sobrevoou os navios portugueses numa altitude elevada, mas não empreendeu qualquer ação para detê-los ou desativá-los. A sobrevivência da frota MiG-17 da Guiné-Conacri preocupava Spínola. Em 26 de janeiro de 1971, o general informou o Ministro da Defesa Nacional que temia retaliações contra instalações portuguesas na Guiné. Apesar do discurso do Governo de Lisboa querer fazer crer que aqueles acontecimentos eram uma questão puramente interna entre fações rivais, Sékou Touré apelou imediatamente a todas as capitais amigas para enviarem forças militares, especialmente aeronaves de combate, no intuito de ajudar a repelir “uma nova série de incursões inimigas”. Spínola avisou Lisboa que a Nigéria teria colocado os seus caças e bombardeiros à disposição de Sékou Touré, e tinha recebido a notícia de que o chefe da Força Aérea da Argélia viajara para Conacri, manifestando a vontade daquela nação em poder intervir. Estaria igualmente a caminho assistência militar não especificada da Líbia, Egito e República Árabe Unida.

No quadro 11 temos a relação dos pedidos de aeronaves até à data de maio de 1971, e no quadro 12 a capacidade de transporte no teatro de operações da Zona Aérea da Guiné em 1971.
Um Noratlas em modelo da Alemanha Ocidental, dos 13 adquiridos por Portugal (Coleção José Matos)
Um P2V-5 Neptune na ilha de Sal (Coleção Touricas)
Um dos dois Boeing 707 adquiridos pela Força Aérea para voos transoceânicos (Coleção Austin J. Brown)
Um Milirôle adquirido à França em 1974, quando foi entregue à Força Aérea já tinham cessado os combates em África (Coleção Robert Ver)

(continua)
_______________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25316: Notas de leitura (1679): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (18) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É o término da viagem memorial de um Capitão de Abril que escolheu um longo itinerário e não hesitou em dizer-nos como levou uma vida pautada por decisões de risco e pela independência de pensamento. Tenho sérias dúvidas que algo parecido possa surgir tão cedo à volta deste meio século que abarca o fim do império e as sinuosidades que têm atravessado o nosso sistema democrático.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (3)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. 

É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Cumpriu três missões em Angola, Moçambique e Guiné, louvado e condecorado, preparou uma companhia de Comandos de que foi seu comandante, o cenário de Moçambique foi determinante para ele questionar a fundo o mais que havia para além da honra e do dever, para além da vasta panóplia de requisitos que impõem a vida militar, vai numa operação em que o guia é um negro que promete levá-los a um objetivo, vai amarrado a um dos seus homens, uma inquietação sem limites começa a tomar-lhe a razão, que causa o ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o seu comando? Que causas justificava a presença de cada um deles naquele palco? 

Tomou nota de que operações como a Nó Górdio nada resolviam, revolvia-se um território, a guerrilha e a população civil acoitavam-se até a operação passar, tudo voltava ao princípio, se bem que a comunicação social afeta ao regime louvaminhasse o feito, era a política da representação.

Geração D é um singularíssimo livro de memórias, já se disse o que este militar viveu até ao 25 de Abril e como ele, e muitos dos seus camaradas tiveram a possibilidade de ver na Guiné que se caminhava para uma hecatombe, tudo iria redundar num bode expiatório, seriam os militares os maus da fita, resolvido o incómodo da Guiné, julgavam os avatares no Estado Novo, todos os meios iam ser postos à disposição das joias imperiais, Angola e Moçambique, contava-se com o auxílio da África do Sul e da Rodésia. 

Matos Gomes adere ao 25 de Abril, alista-se na esquerda revolucionária, põe ênfase na relação que estabelecera com Jaime Neves e como seguiram vias separadas. Detalha o verão quente, as manobras, as alianças, os documentos, a ação de Otelo, o papel do COPCON, a mestria de Costa Gomes de gerir as fações, a impor o acatamento, recorda também como os paraquedistas voltaram a ser traídos.

Findo o 25 de novembro, Matos Gomes está suspenso, aguarda ser chamado ao Conselho Superior de Disciplina do Exército, é convocado e conta-nos o que aconteceu:

“O general promotor leu a acusação com fraco entusiasmo. Formalmente era acusado de ter assinado um documento, o mais comum dos crimes na altura. Entreguei um passaporte que revelava, através dos carimbos das alfândegas, que naquela data me encontrava na Alemanha. Recebera um telefonema de um dos signatários a perguntar se subscrevia mais este documento. Claro que sim. Estávamos do mesmo lado da barricada. 

Também era acusado pelo novo Chefe do Estado-Maior de ter assinado um outro, num encontro no Regimento de Polícia Militar, resultante de uma reunião determinada por Otelo Saraiva de Carvalho, na qualidade de comandante do COPCON. Entreguei aos generais uma ordem de serviço do Hospital Militar onde constava o meu nome e o do Chefe do Estado-Maior, então major e ainda meu contemporâneo na Academia Militar. 

Face a estes factos, concluía pela má-fé do Chefe do Estado-Maior e pedia para constar na ata do julgamento a minha queixa formal contra ele. De seguida, o general presidente deu-me a palavra. Tratava-se do julgamento político de um conflito entre defensores de opções políticas para a sociedade, e a disciplina não é, ou não devia ser, utilizada para esse fim. Estava à mercê da força e não do direito, menos ainda da disciplina. 

O general presidente deu a sessão por encerrada, mas antes do Conselho pedir para eu me retirar, a fim de deliberar, o General Leão Correia, a olhar para o meu uniforme cinzento sem uma condecoração ou emblema, limpo, perguntou-me por que não trazia as fitas com as duas cruzes de guerra com que fora agraciado. Apresentei as razões que me levaram a não usar condecorações: a primeira das cruzes de guerra havia-me sido imposta em Bissau, por um General Comandante-Chefe, Spínola, perante forças em parada, comandadas por um coronel, também ele condecorado. A segunda fora-me entregue há uns meses na secretaria da Direção de Arma de Cavalaria pelo Sargento Leitão, dentro de um envelope, como se fossem umas peúgas. ‘Ora, como não sei se foi a primeira a forma correta de ter sido condecorado, ou a segunda, para não ofender o Exército, decidi não usar condecorações até que seja esclarecido.’ 

O veredito do Conselho reconheceu-me idoneidade para continuar a ser oficial do Exército.”

Matos Gomes é mandado apresentar-se no Serviço Prisional Militar, com sede no edifício da PIDE/DGS, torna-se carcereiro, estão ali algumas figuras graúdas da PIDE. Procura aprofundar o que aconteceu após o 25 de novembro de 1975. Fez 30 anos, tinha uma casa, uma mulher e uma filha com 1 ano, houve eleições legislativas e autárquicas, a cena política internacional transfigurava-se, por cá vivia-se aconchegado com a normalidade democrática, as coisas não corriam favoravelmente às ex-colónias portuguesas. 

Exara nas suas memórias o poder sugestivo que lhe deixou ter-se envolvido no poder popular. Acompanhou Otelo em parte da sua caminhada, era um ser estranho entre aquelas organizações, não era marxista-leninista, revela o seu quadro de pensamento: 

“Rejeito a luta de classes como o princípio dominante das transformações políticas, entendo-a apenas como mais um, e não o determinante. A propósito desse elemento determinante, nunca soube nem procurei descobrir qual é a gota de água que faz transbordar o copo, mas assisti a intermináveis discussões teológicas com muito fumo e fé sobre o assunto. 

Também não perfilhava o princípio da necessidade histórica da alteração das relações de poder ser liderada pela vanguarda do proletariado, pelo partido. Nem era adepto de uma ditadura do proletariado, que ofendia a minha liberdade, a ideia de igualdade dos seres humanos, independentemente da posição que ocupam no processo de trabalho, e contrariava a realização das ditaduras do proletariado estabelecidas.” 

Afastar-se-á das Forças Populares 25 de Abril quando surgiu a radicalização da violência armada.

Lançou-se na escrita, louva o seu quadro de amigos, exulta com a camaradagem que pode manter com um punhado de militares. E a viagem prossegue. 

Quem escreve estas memórias singularíssimas, quem continua a intervir ativamente como observador atento e com opiniões aceradas, é o mesmo escritor que nos legou Nó Cego, Soldadó ou A Última Viúva de África

Há que saudar quem coligiu este punhado de anotações tão íntimas que vão da ditadura à democracia e dizer sem hesitações que não há nada parecido na literatura portuguesa, pois é o testemunho de um bravo militar, um capitão do MFA, alguém que foi revolucionário e nos doou a mais bela joia da literatura da guerra colonial, como se afirmasse, ponto por ponto, que a sua coerência e postura política não estão à venda.