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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

Sem título. Ilustração: Luís Graça (1999)


Contos com mural ao fundo:  O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

por Luís Graça (*)


Partiram de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Tu e a Manuela, em 1997. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar contigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguiram fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não se viam há bastante tempo. E iam estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa de aniversário do seu pai e aproveitara para rever o irmão mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. A Manuela já te falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 tu tinhas andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Foste de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. 

Alguns desses sítios “tocaram-te” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, a vermelho, com os nomes das localidades,  então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos" (sic).  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O teu amigo V... (que infelizmente  já morreu há uns anos) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os demais antifranquistas radicais, a FRAP, o GRAPO...  E fez  questão de fotografar todos os restos de murais que ia encontrando pelo “país basco” com referência aos fuzilamentos de 27 de setembro de  1975 (de 3 membros da FRAP e dois da ETA político-militar).

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância, perder-se no  "labirinto da saudade" de que fala o Eduardo Lourenço... Como tu e o teu amigo V..., mais as respetivas caras-metade, que numa noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro desse ano de 1981, chegaram a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika… Justamente quando estavam a montar a tenda, começaram a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em  "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena", na voz de Zeca Afonso...

− Há emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis,  e que nos marcam para sempre... – escreverás tu, mais tarde.

Tu, pessoalmente,  que toleravas a Amália, passarás a ouvi-la com outro respeito e  emoção, desde que ela morreu, em 1999...  Para o V..., em contrapartida , a Amália em vida não passava de uma "reaça". E o fado uma "desgraça", um dos três FFF que “o regime” (referia-se ao Estado Novo) “explorava até à exaustão para a adormecer o povo”...

Morrera na Flandres, na I Grande Guerra, o avô materno da Manuela. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa – comentaste tu.

O avô Ortiz era origem basca e francesa, pelo lado da  mãe. Dois dos seus três filhos acabaram por vir parar a Portugal como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola…

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a tua interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 20 e poucos anos…

 Era  uma história comprida, dramaticamente cumprida, a da família Ortiz.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

Uma tia, mais velha que a mãe da Manuela, morrera no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961.  Barbaramente assassinada, à catanada.   Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que a última vez que vira essa tia fora quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”.

Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui. O tio Ortiz  y Ortiz (conhecido só por Ortiz), o mais velho dos filhos do avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos.

E depois confidenciou-te:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, e vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo,  com a ida ao Porto.

A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de algum modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareceste tu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História.

A Manuela pegou nesta tua observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das guerras da história de Portugal. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. O ‘terrorismo’, como dizia o meu pai. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, sim, teriam a oportunidade, única, de conhecer uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensaste tu... Em Angola, Guiné ou Moçambique..

− Não se esqueça – recordou-te ela – que eu ainda apanhei a ‘escolinha’ do Estado Novo e a mocidade portuguesa feminina.

E que lembranças tinha a Manuela desse avô Ortiz?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa,  seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os três filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos,  o que lhes terá acontecido depois?

Delicadamente, mas algo a  contragosto,  a Manuela procurou  satisfazer a tua curiosidade  intrusiva,  sobre os acontecimentos subsequentes que levaram à dispersão da família. Ela, Manuela,  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos,  tendo ficado órfãos, pôs-se  a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria então 12 ou 13 anos. A viúva, essa, já estava internada num hospício.

Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra. As duas famílias ainda eram aparentadas, com um bisavô em comum. Daí tratarem-se por primos…

E aproveitou para te dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não te convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos, o meu tio e a minha tia,  só falavam o francês e depois o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz  que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do ‘Front Populaire’, a Frente Popular .  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de ‘chef de cuisine’.

Sobrevoavam já a França, quando ela te começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe.

Cozinheiro de profissão,  “partisan”, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz terá sido preso,  em 1941 ou 1942,   a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur,  pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. O facto de ter sido capturado com uma arma em casa, contribuiu para agravar a sua situação.

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, os judeus e outros…

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  desse campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme…

Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

A Manuela infelizmente ainda não sabia. Quando quis voltar a falar com a mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dos dois seus  irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto.  

−E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado da família. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas...

A mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas a família procurou poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou “sepultada na terra onde, apesar de tudo,  fora muito feliz”, o Porto.

Sobre a avó materna, a Manuela sabia ainda menos. Pouco ou nada lhe contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família. A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa  enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido na Flandres.

– Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na morte do marido. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca… A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

Explicou-te por que é que nunca falou basco. Nem ela nem a mãe. Só o avô materno é que era basco. Em Bilbau, onde vivia e trabalhava em 1997, a Manuela ainda começara  a aprender o “euskara”…

– Já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialetos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os 'defeitos de fabrico'.. Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais 'violentos' ou 'truculentos' que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer  insinuar...

– A ‘violência revolucionária’ da ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a ETA ou qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão 'terrorismo'...

– Como o meu pai… Mas eu não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem o basco, o ‘euskara’  e transmiti-lo aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados em Espanha, tal como outras minorias, os judeus, os catalães, os galegos...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos, na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, física e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem…

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar mais tarde, em Portugal,  em 1937. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto (que prosperou). Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos ‘avós’,  adotivos. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a 'baserri', que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu ‘primo’, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da família, depois da França e da Espanha.

− Neste caso, da minha tia (que foi para freira), e da minha mãe… que conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus ‘avós’,  adotivos… Na Praia da Granja, que era frequentada por uma certa elite, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado "comerciante de vinhos e espirituosas", grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro, e negócios prósperos em África (nomeadamente em Angola).

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha “uma ascendência cristã-nova”, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821. E estiveram no cerco do Porto, ao lado de Dom Pedro IV.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade judaica do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante” (sic), mas com boas relações com o poder, ou pelo menos com o poder económico,  a burguesia financeira, industrial e comercial do Norte.  Foi o retrato que te fez a sua filha, já depois de terem chegado a Berlim.

Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes?

Tu já a conhecias de Lisboa, das “lides profissionais”. Desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia,  em 1986. Ainda não havia a União Europeia nem o euro.  

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (o ministério do trabalho, que tutelava a área, a inspeção do trabalho, as grandes empresas, os médicos do trabalho, os técnicos de higiene e segurança, a Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Deves ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sabias que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficaram em contacto. Reencontravam-se agora, em 1997, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuavam a tratar-se por você. Sentias que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estavam  os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Tu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho.

Por sorte, estavam alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que os levava ao centro de conferências onde se realizava o encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E, depois, ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para ti,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos os europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), ambos se davam  conta, em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na “nossa velha e adorada Europa”. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselini, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas. Depois do jantar, ficavam à conversa sempre que não havia “programa social”.  Já tinham feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais alguns portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe dali.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional como tradutora-intérprete: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-te ela, a ti, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que tu retomaste a  já longa conversa sobre o tio Ortiz y Ortiz (ou só Ortiz), interrompida, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, tu terias a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabias ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazias críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspiravas-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhaste tu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

Da sua vida privada, nunca te falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-te que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refratário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família, que sofrera um abalo com o 25 de Abril e depois com a descolonização.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano letivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, além do inglês,  falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”).

Nunca soubeste se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez te perguntou pela tua família. Era uma mulher atraente, mas de forte personalidade, “muita senhora do seu nariz”.

Só uns dois ou três anos mais tarde, já no virar do século, é que a Manuela te contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando se voltaram a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que tu conheceras em 1981, quando a visitaras pela primeira vez.

 Afinal,  não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara, que o tio Ortiz morrera:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, construído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. 

Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. (Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar.)

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro. Mas a “cuisine française” (tal como os vinhos, o "cognac" e o "champagne") não deixava de ter  prestígio aos olhos dos nazis…

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? – perguntaste tu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau. 

− O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes... 

É o testemunho posterior de um dos sobreviventes, disse-te a Manuela.

− A imaginação, a capacidade de resistência e a abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, também somos capazes de  transcender a nossa condição animal e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói, do semi-deus, do herói grego como o Ulisses...

E concluíste o teu pensamento:

  Manuela, o seu tio Ortiz foi um herói. Um herói trágico.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo, que adorava os seus cozinhados. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento. Escolheu o pelotão de fuzilamento, honrando a sua condição de “maquisard”, de antigo combatente no “maquis”…

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua lucidez, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante os seus carrascos: ‘Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive... la France!’ [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, um pouco emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias,  Manuela, que ainda deve estar  viva,  é um nome fictício. LG]

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sexta-feira, 22 de março de 2024

Q 61/74 - P25295: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (23): O fado de Rosemarie - II (e última) Parte

Travessia dos Pirinéus por imigrados portugueses. Maio de 1965.

Foto: © Gerald Bloncourt (1926 - 2018) >  Foto: cortesia de Le Blog de Gerald Bloncourt  > L'immigration portugaise. 


[O grande fotógrafo da imigração portuguesa foi condecorado em 19 de novembro de 2015 pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, com a Ordem do Infante Dom Henrique, grau Comendador. Na página oficial da Presidência da República pode ler-se, por ocasião da sua morte, a seguinte mensagem, com data de 30/10/2018: 

"Ao tomar conhecimento da morte de Gérald Bloncourt há um dever de memória em evocar o seu trabalho, que imortalizou a história da emigração portuguesa em França nas décadas de 60 e 70.

O fotógrafo francês foi uma das testemunhas do duro quotidiano dos compatriotas que viveram os primeiros anos da maior vaga de emigração para França, sendo simultaneamente amigo e companheiro de tantos portugueses que ali construíram o seu futuro.

Isso mesmo testemunhei em Champigny-sur-Marne, por altura das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10 de junho de 2016, reconhecendo o seu espírito de missão pela defesa da dignidade humana junto da comunidade portuguesa, com o grau de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique. "]



Contos com moral ao fundo > O fado de Rosemarie -  II (e última) Parte

por Luís Graça

 
A Rosemarie foi uma mulher destemida (ou até  corajosa) para a época: casada com um tocador de rabeca chuleira de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica, mas não desistiu da vida, do amor e dos seus sonhos.(*)

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, de educação católica tradicionalista, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, em Angola e depois no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir e ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas só e infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1969, quando partiu para França a salto. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos.

Em Cascais, estava longe da família e da terra, que já não era Cabeceiras de Basto, mas Resende… Tinha um dia de folga, que aproveitava para conhecer Lisboa e os arredores. Metia-se no comboio e desaguava no Cais do Sodré, cujas “luzes de néon” a atraíam, como à borboleta, mas onde nunca chegou a entrar em nenhum bar.

À meia-noite, o mais tardar, tinha que estar de volta a casa no dia de folga. E, depois, aquele era um mundo estranho e perigoso para uma rapariga de província, que fora parar a Cascais com cartas de recomendação de gente de bem.

Ainda se aventurou a ir, um dia, ao Bairro Alto dos fadistas, onde se dizia que se cantava o fado castiço, mas sentiu-se intimidada, com todo aquele corropio de gente, a sair e entrar de tipografias, redações de jornais, casas de pasto, tabernas, oficinas, lojecas e casas que pareciam de bonecas, com mulheres a assomar às "janela de pau", ou vagabundear pelas ruas.

Havia prostituição de rua, mas nada no entanto parecido com a que irá conhecer, uns anos mais tarde, na Rue de Saint Denis, em Paris, quando um dia lá for com o "seu" Antoine, e o seu mano que estava na Alemanha, só para ver aquelas pobres mulheres trajando ricos casacos de vison, umas, outras quase nuas...

Raramente via os patrões, lá no palecete de Cascais. Tinha "uma chefa que era de gancho” (sic), e que mantinha a criadagem na linha como na tropa. O seu dia a dia era passado no meio de tachos e panelas, na cave. A senhora, “que era do Norte”, apreciava o seu “arroz de anho no forno”, uma das suas coroas de glória culinárias… Mas a cozinheira-chefe, francesa, tinha ciúmes dela e não a deixava fazer grandes pratos, apenas o trivial, o pequeno almoço, o lanche, coisas ligeiras. Mas acabou por aprender, à socapa, uns pratos da cuisine française e começou a arranhar o francês… (Falava-se francês lá em casa, o patrão era de origem francesa.)

Já não se lembrava sequer do nome dos patrões, que eram gente "muito rica e muito fina", de famílias tradicionais, católicos, mas liberais e respeitadores do pessoal menor… Cultivavam, no entanto, muita distância social. Nunca se lembra, por exemplo, de ter entrado na sala de jantar, a não ser pelo Natal, em que senhores e criados consoavam juntos.

Os tempos que passou em Cascais, cerca de dois anos, eram sobretudo lembrados pela Rosemarie pela sua iniciação ao fado de Lisboa. Na escola de adultos, onde tirou a quarta classe, conheceu uma jovem fadista amadora que tinha ambições de concorrer à Grande Noite do Fado, no Coliseu dos Recreios.

À noite as duas cantarolavam uns fados no regresso a casa, já que moravam perto. Ficaram amigas mas a Rosemarie perdeu o seu contacto quando foi para França,  em 1969. Tinha para com ela uma dívida de gratidão, arranjara-lhe alguns discos e letras, da Amália, e da Maria da Fé, de quem a Rosemarie também era fã, até por ser uma mulher do Norte.

Logo no início, em meados de 1967, teve autorização de ir ao Cais da Rocha Conde Óbidos abraçar um dos irmãos que chegava da Guiné, depois de cumprido o serviço militar. Vinha “mais maduro, mais homem”, e confidenciou-lhe que tinha intenções de emigrar, talvez para a Alemanha, de comboio. Era só tratar do passaporte, que agora, com a tropa feita, não precisava de ir a salto. Tinham-lhe prometido um emprego numa fábrica de automóveis, mas precisava de “aprender a língua alemã, que era tramada”. E na realidade conseguiu ir para a Alemanha, logo em finais de 1967, mas teve de começar por trabalhar nas obras. Durante alguns anos, não se viram até que ele foi passar o Natal, com ela e o Antoine, em 1973.

Foi também por essa altura, por volta de 1968, que a Rosemarie começou a congeminar a ideia de ir para França viver e trabalhar. Mas só podia ir a salto... Sendo oficialmente casada, precisava de autorização do "cabrão do marido" (sic), o "chefe de família", ausente em parte incerta... ("o tocador de rabeca chuleira", como ela o passou a tratar depreciativamente,  depois que se separaram ao fim de um ano e tal de casados).

Por outro lado, as suas fracas economias não davam para “comprar a passagem”… Precisava de ter pelo menos uns 15 contos, para a viagem e para os primeiros tempos. (Nessa época, em 1969, era uma pequena fortuna, cerca de 5,2  mil euros, a preços atuais.)

Entretanto,  umas antigas colegas e amigas das Caldas de Aregos, em Resende, deram-lhe  notícias do Antoine Ben Oliel (ele usava  o apelido materno). 

Um dia ela  conseguiu o seu contacto. Escreveu-lhe uma carta, com letra  "bem  bonita" (... "sempre tive boa caligrafia"), e com algumas palavras simpáticas em francês (desculpando-se dos "erros de ortografia"), e mandou-lhe uma foto tipo passe.

Ele não lhe respondeu logo, mas na carta que ela irá receber,  passadas umas largas semanas, diz-lhe que, "sim, senhora, se lembrava dela, de Chaves, em 1958 ou 59, e que ia ver o que podia fazer por ela"... Mas acrescentava logo a seguir: " Sem papéis era mais arriscado, para mais sendo mulher. Mas prometia lembrar-se do seu caso e do seu pedido"...

Determinada a sair do círculo vicioso da pobreza e da solidão, a Rosemarie começou a preparar a "mala de cartão" e, um dia, com a desculpa de ir visitar a mãe,  “muito doente, p'ra morrer
”,  obteve autorização para gozar uns dias de licença, na terra.

Nunca mais voltou a casa dos patrões em Cascais. E uma semana ou duas  depois estava a atravessar os Pirinéus, escondida na mala do carro do Antoine.

Não lhe fez desconto nenhum, “o gajo” (como ela o tratava)!... E sabiam pouco um do outro. Mas deu conta que o Antoine se sentia atraído por ela... Na viagem, partilhada com mais gente (“rapazes novos, um ou dois deles fugidos à tropa”), foram pondo, lenta e discretamente, a conversa em dia. Ela, sempre muito faladora, “um livro aberto”, ele sempre muito calado, de óculos escuros, a cigarrilha ao canto da boca, do lado da cicatriz… E usava um chapéu preto à cobói, que puxava para a cara, a tapar-lhe os olhos…

Na presença de terceiros, o passador evitava ter com ela conversas mais pessoais. Respondia-lhe, quase sempre com monossílabos, os olhos postos na estrada, enquanto o Peugeot ia devorando quilómetros.

A cena mais caricata foi a passagem da Rosemarie no posto fronteiriço pirinaico, em Hendaia, que era pressuposto ser “da confiança do Antoine”.

Como era habitual, os homens que seguiam na viagem, apeavam-se uns quilómetros antes, ainda em território espanhol, e seguiam por um trilho, seguro, atrás do guia basco que trabalhava habitualmente com (ou para) o Antoine, que por sua vez os voltava a apanhar mais à frente, já em territ´orio gaulês. Tratava-se apenas de salvar as aparências, não fosse algum chefão aparecer por aquelas bandas sem avisar.

A Rosemarie foi poupada ao incómodo da travessia a pé, seguindo, deitada e tapada com um cobertor, na mala do carro do Antoine. À frente seguia um empregado do Antoine, com a carrinha de nove lugares, vazia. Cada passageiro transportava na mão as valises en carton, no trajeto a pé. Traziam o mínimo, uma ou duas mudas de roupa, calçado, farnel…

Habitualmente era o Antoine que conduzia a carrinha e naturalmente, era conhecido, e mais do que isso, “amigalhaço dos guardas fronteiriços” (a quem costumava deixar uns presuntos de Chaves ou até mas peças de caça). Há muito que fazia os postos fronteiriços de Hendaia e Irun, sendo conhecido como marchand d’art. Na realidade, também comprava e vendia velharias, antiguidades e móveis de estilo, abastecendo algumas lojas no Norte de Portugal e até na Galiza. Rentabilizava assim a viagem. Trazia tralha. E no regresso levava viande à canon, carne para canhão (como ele dizia, na galhofa, lembrando-se porventura dos seus duros tempos de legionário).

Mas daquela vez estava de serviço o “novato” de um agente que não conhecia o Antoine ou, pelo menos, não o reconheceu tout court... Mandou parar o carro e abrir a mala…

A Rosemarie não ganhou para o susto, mas de acordo com as instruções do Antoine, “não tugiu nem mugiu”… Tudo se resolveu num ápice quando o Antoine “puxou dos galões”, e falou no nome do “chefe”, seu velho conhecido do tempo da Legião…

Aliviados, seguiram a viagem, pela route nationale 10 (desgraçadamente também conhecida como cemitério dos portugueses), sem mais sobressaltos, até ao destino, que era… o famigerado bidonvillhe de Champigny.

A Rosemarie, ingénua (quando lhe convinha), nunca soube, ao fim destes anos todos, quais foram les frais de transport... Mas, nesse troço da viagem, já em território francês, ficou então a saber que o Antoine era viúvo e vivia num château, nos arredores da petite ville de A.... no Val-de-Marne.

Simpático, cavalheiro, sedutor,  ofereceu à Rosemarie uma cama num duplex, grande demais para um homem que vivia sozinho, e que era a única parte habitável do casarão, que em tempos devia ter feito parte de uma quinta, sacrificada à expansão urbanística… O chateau não era, afinal, o "castelo dos contos de fadas" que ela imaginara ao longo da viagem...

Passada uma semana ou duas, já dormiam os dois na mesma cama. E ela arranjou, também por convite do Antoine, um primeiro emprego no bistrot, “O Cantinho da Saudade”.

Num dos verões passados, anteriores à pandemia, apanhaste a Rosemarie particularmente bem disposta, a cantarolar um dos fados da Amália, a sua musa inspiradora. Não reconheceste de imediato nem a letra nem a música. 

 C'est le fado de Paris.  − respondeu-te ela.

(...) O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até o Sena se queixa de pena
Que o Tejo não quis sair de Portugal.

O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até Saint-Germain-des-Prés
Já canta o fado em francês! (…)


Foi uma deixa para se  falar do bistrot do Antoine, que tinha nome português, “O Cantinho da Saudade”… lá na petite ville, a sudeste  de Paris, onde ambos viveram… 

Foi o seu primeiro trabalho, quando chegou a França em 1969: foi empregada de mesa e de balcão no bistrot que se tornara um local de encontro dos imigrantes portugueses da região, mas também de magrebinos, em especial de antigos combatentes da guerra de Argélia, os harkis… E a partir do momento em que começou a haver “fado ao vivo”, passou a ser também frequentado por alguns franceses, como os anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos, que já eram conhecidos do Antoine, do tempo da Argélia.

Enquanto tu e a tua entrevistada tomavam café numa esplanada junto à lagoa (de Óbidos), puxaste a conversa para o Antoine… Querias conhecer melhor  o homem, de obscuro passado, que  levara a Rosemarie para França, a salto, em 1969,  e que iria mais tarde lançá-la na “vida artística”, como cantora de fado, depois de passar a  dormir com ela… na cama.

É uma outra história, longa e algo rocambolesca, com muitos "claros e escuros", e alguns silêncios que os entrevistadores (o português e o francês ) tiveram de respeitar.

A Rosemarie já o conhecia de Chaves. “Vagamente”, garantiu-te ela. “Ainda mesmo antes de casar com o tocador de rabeca chuleira ”… Já não podia precisar o ano, nem as circunstâncias, de resto “não era muito boa em datas”. Talvez nalgum baile ou nas festas da cidade. Alguém o terá apresentado à Rosemarie, na altura criada de servir, na cidade:

− Eu dava nas vistas… E ele tirou-me logo a 'fotografia', como vocês dizem em Portugal, quando falam de raparigas… Disse-mo talvez uns dez anos mais tarde, quando me levou para França… 

Tinha vindo da tropa, usava o cabelo à escovinha, ainda falava um português avec accent… A Rosemari

e "não achei muita piada, para mais numa terra de magalas que passavam a vida a mandar piropos parvos às raparigas, quando vinham à cidade"…

A Rosemarie reparou, isso sim, na extensa cicatriz, com quatro ou cinco centímetros, que o Antoine ostentava no rosto, no maxilar direito, no enfiamento da orelha. Parecia exibi-la com orgulho, apesar do disfarce das patilhas.  Era a sua “cruz de guerra”, ganha com sangue na Indochina, em  março de 1954, logo no início da batalha de Dien Bien Phu.

O Antoine era de nacionalidade francesa, mas de origem portuguesa, por parte do pai. Este era flaviense e tinha integrado o corpo expedicionário português, o CEP, na I Grande Guerra, como 1º cabo ou sargento, a Rosemarie não sabia precisar o posto.

E por lá ficou, em França, o pai do Antoine, tendo-se tornado francês por casamento. Vivia na região da Île de France. Foi um dos prisioneiros portugueses da batalha de La Lyz, em abril de 1918. No cativeiro contraiu a tuberculose e escapou, com sorte,  à pneumónica (ou "gripe espanhola") de 1918/19. 

Nunca mais regressou à Pátria, e fez um primeiro casamento, logo que foi libertado. Ficou com uma pequena pensão de guerra, mas cedo enviuvou, não tendo filhos. Até ao final dos anos 20 só se sabe que trabalhou como capataz ou encarregado numa grande quinta que fornecia produtos agrícolas e animais para os mercados abastecedores de Paris.

Foi lá que conheceu a segunda mulher, também francesa, mas de origem judia sefardita, com antepassados em Marrocos. Terão sido, muito provavelmente a avaliar pelo apelido, Ben Oliel, judeus expulsos de Portugal no tempo de Dom Manuel I.

A Rosemarie não sabia grandes pormenores sobre a “árvore genealógica” do Antoine, do lado da mãe, embora usasse o seu nom, o apelido de família. O seu companheiro era uma pessoa muito reservada, nunca ou raramente falando do seu passado, e em especial do tempo da tropa e da guerra.

A Rosemarie não chegou a conhecer a família do Antoine, nem sequer a sua segunda mulher, que morrera largos anos  antes de ela chegar a França. O pai, esse,  morrera ainda muito  mais cedo,
na véspera da II Guerra Mundial, não tendo por isso sofrido a vergonha, la honte, da derrota militar da França, cujo território ele estava convencido que era “intransponível” devido à mítica “linha Maginot”… Nem conheceu, felizmente para ele, a amargura da ocupação da sua querida França pelo exército nazi. Tinha quarenta e poucos anos, e deixava  4 filhos órfãos, dos quais três rapazes e uma rapariga.

Em junho de 1940, a família, em pânico, como milhões de outros franceses, fugiu para o sul, refugiando-se em Bordéus, onde sobreviveu, algumas semanas, com as suas escassas economias e parcos haveres.

Com a ajuda do cônsul português de Bordéus (de que a Rosemarie, imperdoavelmente, não sabia o nome, Aristides Sousa Mendes), a família Ben Oliel conseguiu obter um visto que lhe permitiu chegar a Vilar Formoso, sã e salva. 

O Antoine não tinha ainda 10 anos nessa época mas, ao que parece, terá ficado com recordações bem vivas dessa dramática viagem de comboio, de noite, e do alívio da chegada a Portugal, país de que ele irá gostar muito, até ao fim da vida.

− Il aimait trop le Portugal! − jurava a Rosemarie.

A família é, entretanto, separada, a mãe fica com os filhos mais novos. O Antoine e outro irmão mais velho vão para um seminário ou orfanato no Porto.

−Tempos difíceis! – comentaria o entrevistador francês.

Viveram da caridade. Tanto quanto a Rosemarie contou sobre este periodo , e pelo que o Antoine lhe contava, e que era muito pouco, a mãe, viúva, sem qualquer contacto com a família do marido, que era de Chaves, esteve num lar de freiras, no Porto ou arredores, com o apoio discreto de uma organização portuguesa judaica.

Com 15 anos, o Antoine, já rapagão, voltou a França, depois da Líberation, para ver em que pé estava o assunto da casa da família… A quinta ( e a casa onde viviam, com mais trabalhadores, franceses e estrangeiros) fora requisitada pelas autoridades militares alemãs, e havia notícias de que tinha sido  alvo de ações de sabotagem por parte da Resistência francesa ou bombardeada pelos Aliados.

Entretanto, o Antoine encantara-se por Chaves onde descobriu, com a ajuda dos padres, alguns parentes da família do pai, incluindo um tio, que era guarda fiscal, e alguns primos, que o ajudaram a ele bem como à mãe e aos irmãos. Ia lá passar férias enquanto esteve no seminário. 

Mas em 1944 já tinha sido expulso do seminário  por razões que a Rosemarie nunca soube. 
 Desconfiava, isso sim,  que teria sido pelo seu comportamento truculento e até violento, enfim, pela sua maneira de ser e de falar, que “não ficava bem num futuro representante de Deus na terra”.

Fixou-se em Chaves, "deu em malandro" (sic). Já perto do final da guerra, meteu-se numa "troupe" que fazia contrabando fronteiriço, com um dos primos, filho do tio da Guarda Fiscal. Pequeno contrabando, como café e cigarros...

Mas,  logo em finais de 1946, o Antoine  voltou a Chaves e às atividades lucrativas (mas arriscadas) do contrabando. Aprendeu a conhecer aquelas serras e os caminhos dos contrabandistas. Passados uns meses, teve que fugir para França quando um dos elementos do bando foi atingido, a tiro,  na Galiza, pela Guardia Civil. O tio aconselhou-o a ficar por lá uns tempos.

A família Ben Oliel conseguiu reaver a casa que tinha, a sudeste de Paris. Os miúdos voltaram. E por lá cresceram e casaram. A Rosamarie só conhecia os mais novos. O mais velho já tinha, entretanto, emigrado para Buenos Aires e por lá ficou, sem nunca ter regressado a França ou a Portugal. Nem sequer ter dado notícias.

Em França, a vida da família melhorou um pouco com o apoio da Sécurité Sociale, enquanto o país ia recuperando do pesadelo da guerra, da ocupação e da resistência.

Os “30 gloriosos”, o “milagre económico francês”, fizeram também esquecer os conflitos militares nos territoires d’ outre-mer em que a IV República estave mergulhada, a começar pela sangrenta guerra da Indochina e depois a da Argélia.

Sem paradeiro certo, vivendo de biscatagem, o Antoine não resistiu a uma campanha de recrutamento da Legião Estrangeira, fazendo por volta de 1950 um contrato de seis anos. Era menos uma boca a alimentar lá em casa. Por outro lado, tinha frequentes conflitos com a mãe e os irmãos mais novos. E estava, de
 resto, em idade militar.

A Rosemarie sabia pouco deste período obscuro da vida do Antoine e não conseguia sequer localizar no mapa a Indochine … e muito menos pronunciar Dien Bien Phu. Desculpava-se que a geografia também não era o seu forte. E quando chegou a França nos princípios de 1969, "ainda no tempo do De Gaulle", já não se falava dessas guerras.

Por outro lado, dizia-te que ele tinha sido paraquedista, o que não correspondia à verdade.  Mas não havia informações detalhadas e precisas, sobre o seu passado militar.

Por alguns amigos e conhecidos, inquiridos pelo entrevistador francès,  soube-se que o Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 18/19 anos, por volta de 1950. Pertencia, não aos paraquedistas, mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para  Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. De resto, o Antoine "não gostava de voar, tinha vertigens, pelo que nunca teria passado sequer nos testes para paraquedista" (confidenciou um antigo camarada de armas).

Em finais de 1953 estava na Indochina,  para logo, passados três meses,  em 13 ou 14 de março de 1954  ser ferido gravemente por um estilhaço de obus que lhe desfigurou o rosto.  Teve ainda a sorte de poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressariam do doloroso cativeiro.

−Escapou da morte quase certa, em Dien Bien Phu ou no cativeiro –  comentou um dos entrevistados franceses.

Um ano e tal  depois da convalescença ainda passou pela Algérie. Conseguiu prorrogar o seu contrato por mais uns tempos e ficou por Argel. Aí, sim, terá estado numa base aérea, numa unidade de apoio logístico aos paraquedistas, antes de completar os seis anos de contrato com a Legião Estrangeira.

A doença, e a subsequente morte da mãe, obrigou-o a apressar o regresso a casa, em 1956. E foi, talvez um ano ou dois depois, em 1958, que ele  conheceu a Rosemarie em Chaves.

Os amigos comuns de Óbidos também eram repatriés ou retornados (pieds-noirs, era a expressão injuriosa que se usava em França para designar a população europeia, ou de origem europeia,  que fora obrigada a deixar a Argélia, depois da independência). Professores num colé
gio privado, eram de origem judia, como muitas das profissões liberais a viver e a trabalhar naquela antiga colónia francesa do Magrebe, a “joia da coroa” do império colonial francês: médicos, farmacêuticos, advogados, notários,  professores, agricultires, empresários, etc. A maior parte, de resto, eram já nascidos na Argélia,  há várias gerações. 

Foram entretanto  viver para a região da Ilha de França,  logo em 1962, tendo vindo na leva dos cerca de 800 mil repatriés… Por volta de 1966 começaram a frequentar o bistrot do Antoine, de quem eram vizinhos, mas ele nunca ou raramente abria o jogo sobre os seus tempos de legionário. Gostava, isso sim, de falar da Argélia e de Portugal… mas nunca da Indochina. Eram as duas coisas que os aproximavam. De resto, não falavam de política. Nenhum deles gostava de De Gaulle, mas por razões diferentes.

bistrot do Antoine, na petite ville de A…, no Val-de-Marne, era muito popular nesse tempo, sendo o centro da vida social dos imigrantes portugueses que chegavam a França mas também de alguns magrebinos nascidos em França ou com muitos anos de França, incluindo ex-combatentes da guerra da Argélia…

Antigos camaradas de armas do Antoine, que viviam na banlieue  de Paris, também apareciam de vez em quando para saluer les copains, beber um copo em memória dos “bons velhos tempos” e fazer uma jogatana de cartas, refugiando-se numa das “salas reservadas” do estabelecimento.

A Rosemarie tinha uma presença discreta mas assídua no bistrot do Antoine, substituindo-o, nas funções de gerência, sempre que ele se ausentava por mais de um dia. Em boa verdade, não gostava dos amigos do Antoine, do tempo da tropa e da guerra. Sempre os achou "más companhias" do seu patrão. E, quando ele não estava, "apalpalvam-lhe o rabo, os salauds, os sacanas".

A pouco e pouco o Antoine começou a ser conhecido como o “padrinho” dos portugueses da região e ninguém sabia ao certo desde quando e como é que ele começara a sua atividade de “passador”. Levava, no mínimo,  dez contos por cabeça, para atravessar a fronteira. Por vezes a crédito, mas sempre com juros. Começou a trazer muita gente do Norte, "do rio Minho ao Mondego"... 

Respeitavam-no, para não dizer que o temiam. Aos caloteiros não estava com meias medidas: das ameaças passava aos atos e, não raramente, “andava à porrada”. Muitos foram viver para o bidonville de Champigny, e ele procurava ajudá-los a arranjar emprego e a “tratar dos papéis”. Havia redes de recrutadores de mão de obra ilegal, para o bâtiment, os chantiers, a construção e obras públicas. Enfim, tudo isto custava dinheiro, pelo que alguns desgraçados passavam um ano a trabalhar para pagar as dívidas do “salto”… 

De estatura média mas com um “tronco de touro bravo”, era exímio no jogo de pés e cabeça. A cabeçada dele chegou a mandar alguns para o hospital. Não usava armas,  a não ser em “casos extremos”.

Foi sempre bem sucedido nas suas “viagens de passador”, sem percalços de maior. Conseguiu arranjar passaporte português, já que tinha dupla nacionalidade, obtida em finais de 50. Ao que se suspeita, mais do que se sabe, tinha alguns bons contactos, na PIDE,  na Guarda Fiscal, na GNR, na Guardia Civil e na Gendarmerie, o que facilitava as suas deslocações e a passagem da “carga” nas duas fronteiras.

Mas voltando à Rosemarie: como sabia cozinhar, e "até cozinhava bem", foi uma boa aquisição para o tasco do Antoine. À noite, o bistrot enchia-se de clientes, a maior parte portugueses com saudade do "caldo verde" e de umas boas bifanas no "casqueiro".

Com o seu trabalho, ela pagava a “renda da casa” e ia descontando um xis por mês para as despesas da passagem a salto. Trabalhou um ano para o Antoine, sobravam-lhe uns trocos para os “alfinetes”… Saía de uma escravatura para se meter noutra, receava ela.

Arranjou, por isso, um part-time na limpeza de um consultório médico e depois numa clínica. Vinha a tempo de fazer o almoço para os dois. À tarde e à noite trabalhava no bistrot, era pau para toda a obra, estava na cozinha mas também dava um jeito nas mesas e ao balcão. E ao fim de semana havia fado…

Ao fim de alguns meses, lá pelo volta do Nöel de 1970, já se “desemerdava” (sic) com o francês. "A vida rolava bem". Estreou-se tempos depois no bistrot a cantar, em caraoque, a Amália e a Maria da Fé, que também começava a estar na moda…

Ainda não havia guitarrista, só viola. Alguém desencantou um tipo fugido à tropa que em tempos tinha acompanhado, à guitarra, fadistas amadores em tascos do Bairro Alto. Trabalhava como operário numa fábrica da Citröen. Dois ou três meses depois, com muitos ensaios, a Rosemarie apresentou-se, de xaile preto e rosa vermelha ao peito, a cantar o fado no bistrot, acompanhada à guitarra e à viola…

Comme il faut!

Antoine não escondia o seu orgulho. Apresentava-a já como sua copine, chanteuse, não escondia o seu afeto por ela e elogiava o seu talento.

Une deuxième Amalia! – garantia ele aos seus amigos franceses.

Foi a altura em que os teus anfitriões da casa de Óbidos a conheceram. Foi também o melhor período da vida da Rosemarie, não só da sua vida em França, como de toda a sua vida!

Ah!, oui, j’ ai été três heureuse à cette époque-là! − garantiu-me ela.

A Rosemarie, aux yeux verts, "de olhos verdes", começou a ser notada. E o bistrot do Antoine duplicou a faturação. Mas o seu principal negócio continuava a ser o “ilegal”, o transporte de imigrantes clandestinos, de carro e de comboio… Como fachada legal e fiscal, tinha o tasca e uma loja de antiguidades, no próprio château, na prática, um depósito de velharias… Com os negócios a prosperar, também comprou um licença de táxi e arranjou um motorista, luso-francês de confiança.

Mas era a atividade de passador que lhe garantia mais proveitos. Terá ajudado centenas de portugueses e até magrebinos, a instalarem-se e legalizarem-se em França. E dizia-se até que explorava os desgraçados dos imigrantes com o aluguer de algumas "barracas" em Champigny. Coisa que a Rosemarie nunca soube (ou nunca quis saber). Nisso era notável a sua habilidade em ignorar, escamotear ou "branquear" algumas partes mais desagradáveis da sua vida em comum com o Antoine Ben Oliel.

Tudo corria bem, para o Antoine (e para a sua companheira), até à crise económica de 1973 e sobretudo até ao 25 de Abril… Meteu-se depois la merdre de la politique, lamentou-se a Rosemarie. A partir de 1974, começou a baixar a clientela do bistrot e as viagens a Portugal tornaram-se mais espaçadas…

− Et le fado devient… réactionnaire! – indignava-se ela.

− Reacionário... como assim ? – perguntaste-lhe ti, fazendo-me ingénuo,

Não soube ou não me quis responder. Repetia apenas que o fado se tornara "reacionário", e que os baladeiros haviam destronado os fadistas...

Em suma, a Rosemarie “perdeu o pio”, deixou de cantar por uns tempos, aproveitando a má maré para dedicar mais tempo à sua atividade principal, de femme de ménage. Criou uma empresa de limpezas, com o Antoine como sócio minoritário… E que foi um sucesso. Começava assim a ganhar independência em relação ao “seu homem”…

− Há males que vèm por bem! − contemporizava eu.

Cantava, mais esporadicamente, em festas de portugueses, até meados dos anos 80… "Sempre em portugês"... Naturalmente que nessa altura a estrela da canção luso-francesa era a Linda de Susa... que a Rosemarie nunca conheceu pessoalmente, mas de cuja voz e canções também gostava muito. Viu-a apenas uma vez num concerto em Paris, já vedeta internacional.

Começou a fazer amigos franceses. E integrou-se muito bem naquela pequena cidade de província, na banlieue de Paris. Durante muitos anos não veio a Portugal, nem mesmo quando o pai faleceu. E por volta de finais de 1980 consegue finalmente obter o divórcio do seu primeiro casamento. Nunca chegou a saber o destino que teve o seu primeiro marido, desaparecido para sempre, talvez assassinado numa lixeira de São Paulo ou do Rio de Janeiro.

No início dos anos 90, o Antoine Ben Oliel, já sexagenário, terá tido uma depressão, começou a beber mais ido que o habitual, e os negócios ressentiram-se. Ela ajudou-o a reequilibrar-se com "apoio psiquátrico". Mas em 1995 ele tem uma nova recaída e faz um tentativa de suicídio. Puxou do revólver e apontou à cabeça. In extremis, ela salvou-o, mesmo com risco da sua própria vida... Na luta corpo a corpo, a arma ainda disparou dois ou três tiros para o ar ("ainda lá estão marcados no teto")... Talvez por gratidão o Antoine aceitaria, mais tarde, casar-se com ela, já no ocaso da vida.

 − Era violento, o Antoine ? – perguntaste tu, com alguma  ingenuidade,  Rosemarie, em 2018, o último ano em que ambos se  viram, estando  os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de deles, na sequência da pandemia de Covid-19.

− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surménage… Entendes ?

− Stress, como nós dizemos aqui.

− Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…

− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.

− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano,  no ano em que eu nasci.

O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E tu recordaste-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia… 

− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie... 

− Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…

− Mas também sobrava para si, não ?!...

− Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!

− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.

− Era a minha sina, o meu fado!... Afinal, tive dois homens que me  amavam 
e me  batiam.

Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca chuleira, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era truculento e ciumento. Sugeriste à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…

− Qu'est-ce que ça veut dire ?

Referiste-lhe o facto de ele ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada…  Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário. 

A Rosemarie nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.

− A minha mãe era uma santa – recorda ela.

− E o pai ?

− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.

− E a mãe, consentia ?!...

− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas. 

Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela,  como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.

− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!

Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….

E pormenorizava:

− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.

− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão  ? – perguntei eu.

− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!

E acrescentava:

− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.

Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.

−Os meus manos foram muito amigos dele!

Todavia, a  Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.

− Jalousie, ciúmes! – achava ela.

O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o Francês. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine. 

Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida,  a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.

Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito com os entrevistadores sobre  a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…

− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo (e uma escrava) para aquele gajo!

Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.

− Heuresement, felizmente! − exclamava.

Nunca soube saber nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de frustraca "por não ter dado filhos ao Antoine". "Primeiro, passou a idade... E depois talvez fosse estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)

Em resumo, tudo indicavava que ela teria tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu a entender, nas entregvistas,  que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.

Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…

Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não  escondeu, de resto,  que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…

Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir  de 1974/75... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!,  com uma carreira artística como fadista em França!...

Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada. 

Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...

− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.

Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património… 

Foi ela, a Rosemarie,  quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.

Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.

Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível  da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.

Sentindo a sua saúde piorar (e pressentindo talvez o fim!), o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.

Em 1999, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 68, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne.  Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.

Dois anos depois, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.

No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos,  que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.

− Gente ingrata, des gens de merdre! – arrematou ela.

Os últimos tempos  de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um  ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...  

−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-te a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!

Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.

Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Tu, pelo teu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.  

Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estavas esperançado que ela te arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.

Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E em meados de 2020,  morreu, vítima de Covid-19.
 
Com a morte da Rosemarie, inesperada,  apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto... 

Da última vez que a viste, no verão de 2018, parecia-me uma mulher finalmente feliz, ou pelo menos reconciliada com ela e com a vida, liberta das sombras negras do seu passado. 

Era uma mulher sem rancores, que quis toda a vida, mas,  em vão, amar e ser amada. "Foi o seu fado"... Despediu-se de ti, a cantarolar a Edith Piaff:

"Non! Rien de rien, 
Non! Je ne regrette rien. 
Ni le bien, qu'on m'a fait, 
Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"...(#)
 
© Luís Graça (2020). Revisão: 21/3/2024

(#) Tradução (à letra):

Não! Nada de nada,
Não! Não lamento nada.
Nem o bem,  que me fizeram,
Nem o mal, 
P'ra mim, é tudo igual!
____________

Nota do editor:


(*) Último poste da série > 21 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25291: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (22): O fado de Rosemarie - Parte I

Sinopse da Parte I :

(...) "Conheceste a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. 

"Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.

"Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe 'oublier' (esquecer) e até talvez 'cacher' (esconder) ou mesmo 'effacer' (apagar)  a sua origem portuguesa e a sua condição humilde de imigrante em França, filha de pequenos rendeiros pobres do Norte de Portugl.

"Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca chuleira de uma tuna rural do Marão, alcoólico, ex-combatente, foi vítima de violência doméstica.

"Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um 'cadavre', o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, em Angola  ou no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, no inicio de  1969, quando partiu para França 'a salto«. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos." (...)