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domingo, 14 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25383: No dia 25 de Abril eu estava em... (28): A viver na Bobadela, a trabalhar em Setúbal... Meti dispensa de serviço depois do almoço e fui a correr até ao Carmo, ainda a tempo de ver a saída da chaimite com o deposto Marcelo... (Hélder Sousa, ex-fur mil trms, TSF, Piche e Bissau, nov 70/ nov 72)

Hélder Valério : ex-fur mil trms TSF, Piche e Bissau, nov 70/nov 72;  ribatejano, de nascimento (Vale da Pinta, Cartaxo) e formação (Vila Franca de Xira), engenheiro técnico electrotécnico: consultor na área da higiene e segurança no trabalho;  vive em Setúbal; membro da Tabanca Grande de 11 de abril de 2007; tem 200 referências no nosso blogue; nosso colaborador permanente, é provedor do leitor...

1. Passaram 50 anos do 25 de Abril de 1974... O Movimento dos Capitães começou na Guiné. Clandestinamente. 

Poucos de nós se aperceberam de que estava em marcha um golpe de Estado que iria derrubar um regime velho e caduco de quase meio século (nascido, também, ele, de um golpe de Estado, em 28 de Maio de 1926). 

Poucos de nós suspeitavam ainda,  no início de 1974,  que o fim da guerra se aproximava. Alguns de nós estavam lá, na Guiné, Angola, Moçambique;  outros já estavam cá, ainda na tropa, à espera de lá bater com os quatro costados; uma parte, dos que regressaram, tinha escolhido os duros caminhos da emigração, e nomeadamente para a França, mas também para os EUA e o Canadá (no caso dos nossos camaradas das "ilhas adjacentes da Madeira e Açores"...) para melhorar o seu futuro e o bem-estar da sua família... Mas a grande maioria, que  já estava na "peluda", tratava da vidinha, no ramerrame do costume... 

Havia gente que protestava e até lutava (em organizações clandestinas) contra o regime e a guerra. No dia 9 de abril de 1974, por exemplo, o nosso velho conhecido N/M Niassa, que transportava tropas para a Guiné, foi alvo de um atentado à bomba, felizmente sem vítimas pessoais: o embarque foi atrasado, o navio sofreu estragos materiais, quando se preparava para partir...


Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > 25 de fevereiro de 2018 > "Homenagem da Zambujeira e Serra do Calvo aos seus combatentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013, numa iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira e Serra do Calvo.

Desconhece-se o autor do painel de azulejos que representa a partida, no T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, de um contingente militar que parte para África. Ao canto inferior esquerdo a quadra: "Adeus, terras da Metrópole / Que eu vou pró Ultramar /, Não me chorem, mas alegrem [-se], / Que eu hei-de regressar"...  Infelizmente, nem todos regressaram.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís
 Graça & Camaradas da Guiné]




Recorte da primeira página do "Diário de Lisboa", 
edição de quarta-feira, 10 de abril de 1974,
nº 18424, Ano 54º;  diretor: A. Ruella Ramos.


2. Desde 27 de abril de 2007 que temos vindo aqui a recolher respostas à sacramental pergunta do jornalista e escritor Baptista-Bastos (1937-2017): "Camarada (ou amigo/a), onde é que tu estavas no 25 de Abril de 1974 ?"... 

Temos três dezenas de testemunhos, o que é pouco (*).  O Hélder Sousa já cá estava, tinha regressado em novembro de 1972 da Guiné... Trabalhava na Sapec, em Setúbal. Conta-nos como foi esse dia na sua vida...


Estava a viver na Bobadela, a trabalhar em Setúbal... Meti dispensa de serviço depois do almoço e fui a correr até ao Carmo, ainda a tempo de ver a  saída da chaimite com o deposto Marcelo...

por Hélder Sousa

Olá, venho aqui "à antena" para dar também algum testemunho, principalmente impulsionado pelo que escreveu o Eduardo Estrela quanto a essa coisa de "comissão liquidatária". (**)

Quando acabei a minha comissão, na primeira quinzena de Novembro de 1972, ao despedir-me do meu substituto na função, munido duma fé qualquer que não sei explicar, disse-lhe mais ou menos isto: 

- É, pá, estou muito contente por me ir embora, só tenho pena é que tenhas vindo para a liquidatária e eu não esteja aí nesse momento, pois um ou dois desses gravadores ainda haveriam de ser para mim"... 

E realmente ele veio para a "liquidatária", já que o 25 de Abril apanhou-o com ano e meio de comissão.

Quanto aos momentos do glorioso dia de 25 de Abril de 1974,  fui vivendo de formas diferentes. 

À data estava a viver na Bobadela e a trabalhar em Setúbal.

Apanhei o comboio cedo e fui até Santa Apolónia. Naturalmente que dali até ao Terreiro do Paço apercebi-me e vi o que se estava a passar. Por essa ocasião, e por algumas coisas que ia sabendo, intuí o que eram e quem eram as tropas que estavam no terreno, mas não dava ainda para saber qual seria o desfecho.

Era cedo, apanhei o barco para Cacilhas, tomei depois a camioneta para Setúbal e, aqui chegado, apanhei outro transporte para a Sapec onde tinha começado a trabalhar em Fevereiro.

Entretanto, pelo caminho encontrei um camarada que esteve no meu pelotão de instrução em Santarém, na EPC,  e que ia trabalhar para a Setenave e dei-lhe conta do que entendi do que se passava.

Naturalmente, os acontecimentos eram a motivação de todas as atenções e assim, a seguir ao almoço, meti dispensa de serviço e vim para Lisboa a tempo de estar no Largo do Carmo aquando da saída da chaimite com o deposto Marcelo.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25336: A nossa guerra em números (25): Reordenamentos populacionais: materiais (das rachas de cibe às chapas de zinco) e custos


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 ( Bambadinca) > Xime > Cais fluvial do Xime >1970 > 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) >  Ao centro, em segundo plano, de óculos escuros e boné azul (da FAP),  o fur mil op esp Humberto Reis, cujo grupo de combate estava encarregue de escoltar o transporte de milhares de rachas de cibe, desembarcadas no cais do Xime, e destinadas ao reordenamento de Nhabijões, um dos maiores da época (iniciado com o BCAÇ 2852, 1968/70, e continuado com o BART 2917, 1970/72)... Este 2º Pel ficou cedo sem alferes, o António Manuel Carlão (1947-2018), destacado para a equipa do reordenamento de Nhabijões.

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 2769 (Gadamael e Quinhamel, de janeiro de 1971 a outubro de 1972) > Vista aérea de Gadamael Porto, em finas do ano de 1971:  reordenamento, de dimensão média (c. 110 casas, cobertas a chapa de zinco, com o quartel à direita, em primeiro plano.  Foto do cor art ref António Carlos Morais da Silva, e por ele gentilmente cedida ao nosso camarada Manuel Vaz.

Foto: © Morais da Silva (2012) Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Citação: (1972), "Diário de Lisboa", nº 17849, Ano 52, Quinta, 31 de Agosto de 1972, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_5170 (2022-5-3)

1. Não sabemos se há estudos sobre a historial (e também o custo) dos reordenamentos da Guiné. É possível que existam, no Arquivo Histórico-Militar, muita informação técnica e económico-financeira sobre os reordenamentos das populações. Deixemos isso para os investigadores. (*)

Temos, no nosso blogue, alguns dados, parciais e dispersos,  sobre os reordenamentos populacionais, que foram um peça fundamental da política spinolista "Por uma Guiné Melhor".

É verdade que não foi o Spinola quem "inventou" a figura do "reordenamento" (já havia a experiência francesa das "agrovilles", na guerra da Indochina, nos anos 50,  depois o "Strategic Hamlet Plan" dos americanos no Vietname, com as suas "aldeias estratégicas";  e de novo os "regouprements" franceses na guerra na Argélia, nos anos 60).

Mas também é  verdade que a palavra "reordenamentos" praticamente não se ouvia antes do "consulado" de Spínola (1968-1973): nos livros da CECA sobre a actividade operacional no CTIG, a palava não aparece no livro 1 (até finais de 1966) (há duas referências com o descritor "reordenamentos", um deles no âmbito da criação, em 1973 (quando entrou em vigor o Estatuto Político-Administrativo da Província da Guiné), do Conselho Provincial de Educação Física e Desportos e Reordenamemtos, no âmbito dos nova orgânica dos Serviços da Administração Central... 

 Já no  livro 2 (1967-1970) há  cerca de 70 referências (Reordenamento / reordenamentos). 

Logo em 3jun68, na sequência de uma reunião no QG/CTIG, é publicada a Directiva n° 2/68, que "ordena o estudo imediato da remodelação do dispositivo na área de Aldeia Formosa por forma a obter o rápido reordenamento e instalação das tabancas em autodefesa, respeitando o princípio da concentração de meios", a ser concretizada "antes da época das chuvas".

 Em 30 de setembro, sai outra importante diretiva,   Directiva nº 43/68, de 30Set ("Porque o reordenamento das populações e a sequente organização das tabancas em autodefesa é um problema complexo e que requer técnica especializada, é determinado o seu estudo num dos departamentos do Gabinete Militar do Comando-Chefe "(...).

No essencial, a doutrina do Com-chefe sobre sobre o assunto ("Reordenamento das populações e organização da autodefesa") é definida nesta época (1968/70).

Em 1969, na época seca, deu-se início â construção dos primeiros grandes reordenamentos. Noutra ocasião daremos notícia mais detalhada sobre estas atividades. 

No último livro da CECA sobre a atividade operacional na Guiné (1971/74) são 63 as referências aos descritores reordenamento/reordenamentos. (*)

Em meados de 1972, e regundo informação do Avelino Rodrigues, em trabalho de reportagem sobre a Guiné de Spínola, haveria uma centena de "aldeias de zinco", coo Nhabijões.

2. Vejamos agora um memorandum elaborado pelo Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia 447  entregue, em julho de 1971, aquando da visita à Guiné de uma delegação da ONU (***).

(...) Tem o Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia habilitado inúmeros oficiais, sargentos e cabos com o estágio de reordenamentos. Esses elementos, formando equipas constituídas por um oficial (alferes), um encarregado de obras (furriel),  um pedreiro (cabo) e um carpinteiro (cabo),  executaram no interior da província com a colaboração das populações, cerca de 8.000 casas cobertas a colmo e 3.880 cobertas a zinco nos últimos anos.

O Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia 447 tem apoiado essas construções com material e, quando solicitado, tem prestado assistência ténica localmente.

A esse volume de trabalho correspondem as seguintes quantidades de materiais:
  • Rachas de cibe - 542.000
  • Chapas de zinco - 550.960
  • Ripas - 756.600 metros
  • Pregos - 120.280 kg
  • Anilhas de chumbo - 27.160 kg
  • Cimento - 19.400 sacos

Ainda segundo a mesma fonte, para, por exemplo, 60 casas T2, havia necessidade de adquirir:
  • 11.700 ripas; 
  • 780 kg de pregos n.º 15; 
  • 600 kg de pregos n.º 7; 
  • 480 kg de pregos zincados; 
  • 420 anilhas de chumbo 6/8"
  • e 8.520 chapas de zinco (em média, 142 chapas por casa T2)

3. Segundo o gen Bettencourt Rodrigues. o último com-chefe do CTIG, até ao final de 1973, as Forças Armadas tinham construído 15.700 casas, 167 escolas, 50 postos sanitários, 56 fontenários e 3 mesquitas, e aberto 144 furos para abastecimento de água. (pág. 115) (****)

Destas 15,7 mil casas, 2/3 deviam ser cobertas a colmo, e as restantes (c. 5200) a zinco (estimativa nossa)

A casa com cobertura de zinco era, na época, o supremo luxo para um guineense a viver no interior (ou na cidade, em Bissau)... O colmo tinha que ser substituído todos os anos, exigindo maior volume de mão de obra. Mais ecológico e mais aconcelhado do ponto de vista térmico, aumentava, todavia, o risco de incêndio. 

O zinco, importado, deveria ser o materia mais caro da casa. No total, podemos estimar em 738,4 mil as chapas de zinco fornecidas pelo BENG 447 para os reordenamentos populacionais... 

Hoje um metro quadrado chapa de zinco deve custar em média 7 euros...Admitindo que as chapas usadas nos reordenamentos fosse de 100 cm x 100 cm (1 metro quadrado) , teríamos um custo de c. de 5,2 milhões de euros, a preços de 1971 (ano médio do "consulado" de Sínla, 1968/73) seria qualquer coisa como 315 mil contos (mais ou menos o orçamento anual da província!)...

Mas havias outros materiais a contabilizar...como, por exemplo, as rachas de cibe.


3. Já não nos lembramos quantas rachas de cibe levava uma casa... Só a estrutura do telhado, com cobertura de folha de zinco, deveria levar pelo menos umas 20... Mais outro lado, para suportar o telhado ao longo do varandim a toda a volta.. 

O total de casas em construção em Nhabijões era de 350, fora os equipamentos coletivos ou sociais...  Na altura falava-se que cada racha de cibe ficava ao exército em 7$50 (sete pesos e meio)... 

Um total de 15 mil rachas de cibe,  é nossa estimativa do material transportado do Xime para Nhabijões, com um custo direto de mais 100 contos.  (Em 1970, a preços de hoje, seria qualquer coisa como 33,5 mil euros)... 

Se, entre 1969 e 1974, as Forças Armadas no CTIG ajudaram a construir 15  mil casas, no total das tabancas reordenadas e, admitindo que cada casa, com colmo ou chapa de zinco, levasse pelo menos 50 rachas de cibe, temos um total de 750 mil rachas de cibe, com um custo de 5,6 mil contos (a preços de 1971  representariam hoje cerca de 1 milhão e 700 mil euros...

Uma tal quantidade de rachas de cibe (e admitindo  que um tronco dava 4 rachas) terá implicado o abate de 187,5 mil palmeiras, dependendo da altura de cada uma (o que, num pequeno território como o da Guiné, corresponderia a um gigantesco palmeiral;  o nome científico desta palmeira é Borassus aethiopum;  tem tradicionalmente  grande importância na construção civil; pode atingir os 20-30 metros de altura, pelo que o seu espique ou tronco dará mais do que 4 rachas).

Para além das chapas de zinco e das rachas de cibe, haveria ainda que contabilizar as ripas, as portas e janelas, os pregos, as ferragens, o cimento... Tudo isso custava dinheiro. O resto, a mão de obra (civil e militar), os transportes, a segurança, outros materiais como os tijolos de adobe, etc.  tudo era de borla (mas tinha um custo, indireto e oculto). 

 O PAIGC não gostou da "brincadeira": em 13 de janeiro de 1971, as NT accionam duas potentes minas A/C à saída do reordenamento de Nhabijões, de que resultaram 1 morto e bastantes feridos graves... (Por sorte, para a população local e possivelmente com a sua conivência, não havia civis a bordo do Unimog 411 que às 11h00 ia a Bambadinca, como era habitual, buscar o almoço para os militares destacados. )

Em outubro de 1973,  e pela primeira vez na história da guerra, o grande reordenamento de Nhabijões, de maioria balanta e onde vivia gente com parentes no "mato", foi flagelado, ao mesmo tempo que o destacamento do Mato Cão. Aviso intimidatório ? Retaliação ? 

Nhabijões, no subsetor de Bambadinca, era então, no final de 1969,  um importante aglomerado habitado por gente com parentes no "mato", e que era tradicionalmente considerado, antes do reordenamento, como um conjunto de núcleos habitacionais ribeirinhos "sob duplo controlo".  

Só a CCAÇ12, deu 1 alferes, 1 furriel e 1 cabo (metropolitanos) e 1 soldado (guineense) para integrar a equipa técnica do reordenamento de Nhabijões... E destacava periodicamente militares para a sua defesa... O seu primeiro morto foi o sold cond Manuel Soares, em 13/1/1971. Nhabijões foram, por isso,  também "regados com o nosso sangue"...

De qualquer modo, Marcelo Caetano mais os seus ministros da Defesa, do Ultramar e das Finanças tramaram a política spinolista "Por Uma Guiné Melhor"...
 Ao que se sabe, o sucessor de Spínola já não terá tido a mesma abundância de dinheiro para continuar a fazer a "psico"... 

Ora, quer se goste ou não, há uma Guiné antes e depois de Spínola:

  • Quando ele chega em meados de 1968, o território tinha 60 quilómetros de estrada alcatroada;
  • Cinco anos depois, são 550 km de estrada alcatroafa;
  • No ano escolar de 1970/71, a tropa administra 127 das 298 escolas primárias do território, ou seja cerca de 43%.; o resto eram as escolas oficiais , como a de Bambadinca (30%)  e as particulares,como escolas das Missões Católicas (27%);
  • Spínola deixa o território com uma criança em cada três, em idade escolar, a frequentar a escola
Spínola chegou a ser  uma ameaça série ao PAIGC... Mas homens como António Spínola ou Sarmento Rodrigues foram exceções na história da administração colonial na Guiné...
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Notas do editor:


(**) Vd. CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 1 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, 533 pp.)

CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 2 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, 604 pp.)

CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 3 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, 554 pp)

(**) Último poste da série > 28 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25312: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Inf Bettencourt Rodrigues, Governador-geral e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XIII: Cerca de 95% do total dos médicos e 75% dos professores em serviço no território eram militares...

(***) Vd. poste de 18 de etembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12057: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (9): Os reordenamentos populacionais

(****) Vd. poste de 28 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25312: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Inf Bettencourt Rodrigues, Governador-geral e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XIII: Cerca de 95% do total dos médicos e 75% dos professores em serviço no território eram militares...

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25162: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte IV: Apesar da censura, foi possível documentar a alegria do povo de Lisboa, manifestando-se nas ruas ao saber do fim da II Guerra Mundial na Europa em 7 de maio de 1945

 


Capa da "Vida Mundial Ilustrada, Lisboa, ano IV, nº 209, 17 de maio de 1945, preço avulso, 1$80...A imagem não era das multidões a festejar o fim da guerra e  a vitória dos Aiados ("Nações Unidas"), mas a visita... de Salazar ao embaixador de Inglaterra:

 "O sr. Presidente do Conselho,  como Ministro dos Negócios Estrangeiros, esteve na Embaixada da Inglaterra, para exprimir ao sr. Embaixador, "Sir"  Campbell, o quanto satisfazia ao seu Governo e aos portugueses a vitória das Nações Unidas"...

Salazar e a censura tinham horror às multidões... Jornais do "reviralho" como o "Diário de Lisboa" não puderam publicar fotos como estas a seguir, que aparecem no interior da "Vida Mundial Ilustrada", com a população de Lisboa (homens, não se vê uma única mulher, a não ser às janelas) a vitoriar os Aliados... (E nós estávamos a nascer, e alguns de nós já mamavam ou até gatinhavam.)

Cauteloso, e com "pinças",  o jornalista remetia o júbilo do povo para uma página interior (pág. 15) que só podia ler quem tivesse comprado o semanário por 1$80 (tinha aumentado 80% desde a data do seu lançamento em meados de 1941) (*)... 

Escrevia-se assim naquela época, em estilo gongórico e cheio de subentendidos: 

"Acabou a guerra! Todo o mundo aguardava ansioamente esta notícia que devia chegar de um momento para o outro. E porque era assim esperada e era certo o fim da guerra, ninguém sonhava que chegasse tão longe a ordeira alegria do povo português, dia-a-dia vivendo a dureza de um conflito que, nem por estar longe, podia ficar estranho à nossa consciência de homens e de europeus. Pode-se dizer que não houve ninguém que não empunhasse uma bandeira, que não  gritasse a sua alegria, e não dissese como Salazar no seu discurso: - Ainda bem que acabou a guerra! Ainda bem que sairam vitoriosas as Nações Unidas" (pág. 15)... E se tivessem ganho as "potências do Eixo" ?  Parte da elite portuguesa da épocapolítica, militar, e até económica e financeira, era germanófila, apesar da "neutralidade" do país... Salazar era um político pragmático, mais próximo política e ideologicamente do fascismo de Mussolini do que do nazismo do Hitler... Destestava os americanos  e o regime capitalista e demoliberal, leia-se, parlamentar...

 

Foto tirada na Conde Beirão, em Lisboa...Excerto da legenda: (...) "Diante das embaixadas, diante das legações, pelas ruas da Baixa, a cidade de todas as condições sociais espalhava-se e comprimia-se porque todas as ruas pareciam pequenas para exprimir o seu entusiasmo" (Útima página, pág. 24).

Na Av da Liberdade, junto ao Monumento aos Mortos da Grande Guerra... (pág, 15)

(Com a devida vénia... Cortesia de Hemeroteca Digital de Lisboa  / Câmara Municipal de Lisboa)

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segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24370: A galeria dos meus heróis (50): Diz-me quem foi o teu pai... (Luís Graça)

 


A galeria dos meus heróis > Diz-me quem foi o teu pai…

por Luís Graça (*)


Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

Quem, o Ulisses?

 Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

 Já agora retifica: ex-cunhado... Mas nunca fomos à bola um com o outro.

E eu aproveitei então para esclarecer, o meu interlocutor, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… Mal saiu a amnistia aos faltosos, refratários e desertores, voltou à sua terra para abraçar o paizinho e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, mal nos vimos. Mas ainda me lembrava dele na escola, ao ex-cunhado de Jorge, hoje o senhor embaixador com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola acrescentou o Jorge.

Foi um sortudo, o Ulisses!...

Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

A dona Natércia?!... exclamei eu. A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

Há,  sim. E a nossa terra não teria agora  atalhou o Jorge uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe", estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou-me o Jorge, uns bons anos mais velho do que eu. − Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... (Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos.)

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.   Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa.

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrei eu.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o nosso historiador local, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da terra, vim a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época.

Claro, o pai Anselmo visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante 20 e tal anos mais nova.

Mas… exilado, dizes tu?!

É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

 À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como alguns que a gente conheceu. Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou comigo,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorger  a completar a minha frase.

E depois elucidou-me:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube muito mais tarde... Também nunca vi semelhante humilhação aos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste dos primeiros da terra a marchar para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios.

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadmizada.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a tímida abertura da economia, ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém. Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos".)

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. O Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. O Jorge achava que ele era do "reviralho"...

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política comigo. Nem nunca o ouviu falar de política com os filhos.

Também é verdade, sempre declinou o insistente convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca.

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. Em boa verdade, a razão não era essa: ele movimentava mais dinheiro que a câmara toda, dependente das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, e elevação de espírito, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... Acabou,  no entanto, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Todavia, sabia-se pouco da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indaguei eu.

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que sempre me pareceu mais verosímil ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distància, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir à  arte xávega e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a muher e os filhos detestavam... preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial era menos considerado socialmente do que o comerciante. O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) destas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE . Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, outra assistentes social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório das empresas.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses ainda foi meu colega de escola… Mas não propriamente meu amigo, Separavam-nos três anos e os seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de menino rico… Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que eu nunca pude frequentar. Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos. 

−  Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida trocou-lhe as voltas − acrescentei eu.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena melodramática que terá feito lá em casa, "preferia ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". A mãe era uma senhora conservadora,   beata e amiga dos pobres. E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se política naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente... Formou-se em direito europeu na Holanda, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematei eu. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  Mas temos de reconhecer que teve um bom pai.

© Luís Graça (2023)




Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934.  São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a  Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

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Nota do editor:

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959