sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17887: Notas de leitura (1006): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Vale a pena, nesta fase da investigação, recordar o ponto de partida da documentação que se está a compulsar. Há referências mínimas a 1915, os relatórios de execução começam efetivamente a partir de 1916. Nada da história do BNU a partir de 1903 aparece nos arquivos. Daí não haver comentários às chamadas campanhas de pacificação, ao derrube das muralhas à volta de Bissau, no tempo do governador Carlos Pereira, já na I República, não encontrei qualquer referência à Liga Guineense que entrará no jogo partidário, toda esta nova era republicana é ajuizada criticamente pela ausência de figuras de gabarito na governação, e pela perpetuação de todos os atrasos, não se vislumbra um plano de desenvolvimento. A situação conhecerá um salto qualitativo com a chegada de Velez Caroço que tentará implantar uma grande seriedade na vida administrativa, resolver o angustiante problema dos cambiais numa altura em que a República pouquíssimo investe na Guiné.
Para a filial de Bolama vai travar-se a luta pela sobrevivência, Bolama definha, o gerente arvora-se em pensador económico, dá sugestões. Mas ninguém o ouve.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (5)

Beja Santos

Despontou a rivalidade entre as agências do BNU da Guiné. No seu relatório do pós-guerra, o gerente de Bolama agarra-se com unhas e dentes à tese de que o futuro da província tem o seu farol naquela capital criada em 1879, dali irradiará irrevogavelmente o desenvolvimento. É da maior pertinência ler a sua argumentação, prevendo um futuro que não aconteceu:
“Se hoje o comércio procura de preferência Bissau, se ali acorre a navegação de longo curso, se se traça a planta de uma grande cidade, tudo isso pode sofrer profundas alterações desde que o porto de Bissau deixe de ter a importância que hoje tem.
Não há razões se não transitórias para que ali hoje se centralize o mais importante comércio da colónia. O seu porto desabrigado, batido no tempo das chuvas por violentos tornados, a violenta corrente do rio Geba que, certamente na opinião dos entendidos, provocaria enormes assoreamentos se se fizessem muralhas e aterros para atracações de grandes navios e para projetadas gares marítimas, e a ideia de ali fazer a testa de um caminho-de-ferro de penetração que teria de atravessar extensas regiões alagadiças, estão em contraposição com o porto de Bolama: abrigado, com fraca corrente, gabado pelos capitães de navios estrangeiros que conhecem um e outro porto e com a circunstância de mesmo em frente de Bolama ficar o continente e onde poderia ser a testa de um caminho-de-ferro que subindo pela margem esquerda do rio Geba pusesse o interior em comunicação com o porto de Bolama.
A realização desse melhoramento derivaria a maior parte do movimento para Bolama. Para saída da província, o próprio canal de Orango, direto a Bolama, daria melhor navegação, no dizer dos náuticos, depois de balizado, que o canal do Geba hoje usado.
Se a proposta que o governo da colónia fez já ao ministro para balizagem daquele canal e para início do estudo do caminho-de-ferro de S. João (em frente a Bolama) fora avante e dela resultara a convicção de que razão têm ou não técnicos, mas conhecedores do terreno, que o traçado natural deve ser de S. João a Bafatá, mais que certo será o declínio de Bissau e consequentemente a transição da importância do comércio de Bissau para Bolama.
Daí resultará também o repovoamento da vasta e rica região do Rio Grande, tendo-se já com esse fim deixado essa área com uma taxa de imposto de palhota menos elevada que a de outras regiões da colónia, tentando ali fazer convergir a população que outrora foi batida e escorraçada para outros pontos pelos Beafadas, hoje sem poderio.
Enquanto porém esse plano e projeto não for realizado e dele resultem consequência benéficas para Bolama, os lucros desta filial serão variáveis”.

E tece considerações sobre a clientela da filial de Bolama, clientes nacionais e internacionais, fala da fusão que se prevê entre a Empresa Agrícola e Comercial dos Bijagós Lda, a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné e a Companhia de Fomento Nacional. “Se a fusão das três firmas se der, fica sendo uma importantíssima companhia e decerto tratarão de dar maior desenvolvimento aos seus negócios e à Companhia e Fomento Nacional, em Bafatá”. O gerente de Bolama exprime-se como um futurólogo, falando de Bafatá:  
“No centro do território da colónia é hoje onde se centraliza grande parte do comércio do interior. A sua importância aumentará ainda se for avante a construção do caminho-de-ferro de penetração. Bafatá será um entroncamento das vias que partem quer de Bolama quer de Bissau e quer a linha siga para Farim quer para o território francês para Firdu, quer mais para baixo para Cadé, dali partirão os ramais e a sua importância aumentará. Se ali estabelecermos uma agência ou subagência do nosso banco, os lucros da agência de Bissau e os desta Filial sofrerão decréscimo, mas permitam-nos Vossas Excelências que lhe digamos que mais valerá essa diminuição de lucros para Bissau e para nós do que dar-se a fusão das três companhias indicadas e o Banco Colonial antecipar-se-nos e pôr ali alguma agência”.

O gerente da filial irá ainda exprimir sobre outros assuntos, mas voltará ao seu tema de eleição, as comunicações, dizendo o seguinte: “As vias principais de comunicação para o interior são as navegáveis. Estradas, poucas há e não existe nenhum plano para uma rede geral à qual se subordinassem as que se fazem numa ou noutra circunscrição. Essas estradas, ou melhor caminhos, no tempo das chuvas são intransitáveis. As vias navegáveis não estão convenientemente navegáveis e limpas e daí estarem algumas quase inavegáveis”. E a exposição articula-se com uma petição apresentada pela associação comercial sobre a construção de um caminho-de-ferro de penetração até Bafatá e que seguisse para a colónia francesa. Volta-se novamente ao assunto da imperatividade do censo, saber qual a população da colónia. E escreve: “Ultimamente, soubemos que se arrolaram 200 mil palhotas; calculando-se 3 almas por palhota, sendo certo que na maioria dos casos albergam 5 a 7 indivíduos, teríamos uma população gentílica de 600 mil pessoas, cifra a que teríamos que adicionar a população que não vive em palhotas e as das regiões não arroladas. Julgamos por isso que a colónia deve ter perto de 1 milhão de habitantes”.

Dentro daquela linha que é informar Lisboa sobre acontecimentos de vulto como nomeações e exonerações, em 20 de Abril de 1919 comunica-se para Lisboa: “O Governador, Coronel de Artilharia Josué Duque foi exonerado e mandado seguir para a metrópole. A exoneração foi quase geralmente bem recebida, pois era acusado de nada fazer. Era extraordinário o desrespeito com que a este governador se referiam não só os chefes de serviço mas também o funcionalismo de pequena categoria. Foi nomeado para o substituir o Capitão de Infantaria Henrique Alberto de Sousa Guerra. A nomeação foi desigualmente recebida conforme as simpatias de uns e antipatias de outros. A Associação Comercial prepara uma representação para lhe ser entregue ao tomar posse, e em que são indicadas as necessidades da colónia”.


Outro acontecimento relevante que a filial de Bolama entendeu trazer ao conhecimento de Lisboa foi a prisão do régulo Abdul Indjai. O gerente sintetiza o currículo do régulo do Oio e as acusações que lhe eram feitas. Eram inúmeras as queixas dos comerciantes que temiam que aquele comportamento contagiasse outros régulos, vivia-se uma grande instabilidade na região entre Mansoa, Bissorã e Farim, e o Conselho do Governo mostrou-se dividido sobre a expulsão do antigo braço direito Teixeira Pinto ou a sua entrega aos tribunais. E a notícia termina assim: “Hoje reuniu de novo o Conselho do Governo em sessão deliberativa e talvez porque alguns chefes de serviço reconhecessem o caminho errado que iam seguindo com politiquices contra o governador, acompanharam os vogais eleitos, votando por maioria a expulsão da colónia por 10 anos, máximo período que a Carta Orgânica permite, fixando-lhe para cumprimento do desterro, por proposta do governador, a ilha da Madeira”.

As coisas não se passaram assim, Abdul Indjai foi para Cabo Verde, o seu advogado tudo fez para ter um julgamento em tribunal, adoeceu e morreu no arquipélago.

O repositório de informações para Lisboa tem tanto de vasto como de surpreendente. Houve heróis militares que se fizeram cair em desgraça, com destaque para Marques Geraldes e Graça Falcão. O leitor vai ficar admirado com os dados que Bolama possuía sobre Jaime Augusto de Graça Falcão. Seguir-se-ão dados úteis sobre o que era o mercado guineense em 1920 e o relatório de 1921 voltará a uma linguagem de descasca pessegueiro, vive-se novamente um período áspero que antecede a chegada de Velez Caroço, um grande governador que não deixará de ter inimigos de estimação, que usarão de todo o trotil possível para o deslustrar, em vão.

Jorge Frederico Velez Caroço, um ponto de viragem na governação da Guiné

(Continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 13 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17858: Notas de leitura (1003): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17865: Notas de leitura (1005): “AVC Recuperação do Guerreiro da Liberdade, Uma vitória no mundo dos silêncios”, por José Saúde, Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

A ideia do comboio de São João (lado norte do canal de Bolama) era como se Santa Apolónia fosse em Cacilhas, e depois seguia para Bafatá e mais uns ramais, é a primeira vez na minha vida que oiço tal coisa saída da boca de um «branco» gerente de banco.

Mas já alguns anitos um colega meu balanta, me "acusou" que nós os colonizadores, nem um comboio deixámos na Guiné.

Portanto a ideia de comboios na Guiné, agora foi a segunda vez que ouvi falar.

Sem Beja Santos...!

Agradecido.

Não sei se as pessoas sabem que quem fazia os nossos inúmeros comboios, na metrópole e nas colónias, eram os engenheiros e técnicos ingleses, aí ainda acabavam por ligar Bissau à Gâmbia, naquele mundo francófono e a história seria outra.